Arte e cultura na contramão 

Fernando Kinas *

     Com o golpe de 1964 e os mais de vinte anos de ditadura civil-militar, uma parte importante do movimento cultural e artístico brasileiro foi destruído. Tanto aqueles que estavam na senda do nacional-popular, como os que defendiam propostas consideradas de vanguarda e internacionalistas, sofreram com as diferentes formas de brutalidade – perseguição, demissão, censura, prisão, exílio, tortura, aniquilamento físico – resumidas na fórmula “terrorismo de Estado”.

     Uns foram mais cruelmente atingidos, como se sabe, porque representavam perigo efetivo (era o que se pensava na época) para os detentores de privilégios. Não é à toa que a sede da União Nacional dos Estudantes, que organizava os Centros Populares de Cultura, foi incendiada já no dia 1º de abril de 1964 e que milhares de obras artísticas, em praticamente todas as áreas de expressão, foram mutiladas ou integralmente censuradas, especialmente após o AI-5. Não foi, evidentemente, um capricho dos militares e dos seus parceiros oligarcas (da indústria, do campo, da mídia) o fato de centenas de artistas serem monitorados de perto, muitos deles virando alvos da repressão direta dos agentes do Estado.

Cena da peça “Morro como um país”, Kiwi Companhia de Teatro. Foto divulgação

     Mas agora é preciso discutir, quando se fala das relações entre arte, cultura e política – entre tantos outros temas que atestam sem apelação nosso atraso e nossa insuportável desigualdade social (apesar dos ufanismos da “sexta economia do mundo”) –, quais são as consequências desta interrupção que o golpe provocou na vida nacional em geral, e na cultura em particular. Além das vidas dilaceradas, que não podem ser esquecidas e são motivos de sobra para as exigências civilizatórias de verdade, memória e justiça, produziu-se no Brasil um vácuo de pensamento crítico, um vácuo de criatividade, um vácuo de rebeldia e liberdade. A ditadura destruiu um país que “estava irreconhecivelmente inteligente”. Mas é difícil manter o vácuo. No campo complexo da arte e da cultura este vácuo foi sendo ocupado por falsos rebeldes e falsos críticos. Ou rebeldes e críticos pela metade, se preferirem. Havia viço no comportamento fora da norma e integração, despudorada ou disfarçada, no âmbito político (e econômico), embora, em muitos casos, houvesse autêntica criatividade. As mostras, ou os embriões, desse processo já estavam lá em 1967, nos coloridos do tropicalismo. Portanto, não deve causar surpresa o jingle que os Mutantes criaram para a Shell e que, num lance tão irônico quanto conveniente, gravaram no seu disco de 1969. Por isso também não se deve estranhar o fato de Tom Zé virar garoto-propaganda da Coca-Cola, cuja publicidade anuncia o megaevento, megafaturado e megaelitista, que é a Copa do Mundo de Futebol de 2014. O sincretismo pode embutir, infelizmente, todo tipo de concessão comercial, pragmatismo e oportunismo.

Cena da peça "Morro como um país", Kiwi Companhia de Teatro. Foto Divulgação.

Cena da peça “Morro como um país”, Kiwi Companhia de Teatro. Foto Divulgação.

     Assim caminha uma parte da humanidade, porque há quem insista em andar na contramão. Isto sem esquecer, é claro, da direita tradicional. Organizada ou não, raivosa ou esclarecida, ela continua ditando regras em arte e cultura, preservando na sua esfera específica de ação, embora sempre disputando ideologicamente o conjunto do pensamento social, os privilégios conquistados ao preço que se sabe (em épocas de ditadura e fora delas). Ao lado da reação tradicional, este é um tema incontornável desde que surgiu o fenômeno conhecido como “lulismo”, há um (agora) amplo setor que tenta se equilibrar – feito funâmbulo amador – na corda bamba que vai da crítica sistêmica à integração total. São aqueles que justificam qualquer coisa, embora fazendo ressalvas com a intenção vã de salvar as aparências, de mostrar que nem todos os dedos e princípios foram entregues junto com os anéis. Neste ambiente degradado vale quase tudo: acordos espúrios pela governabilidade (Maluf, Sarney, Delfim, Calheiros…); alianças com ruralistas, latifundiários, banqueiros-especuladores, barões da mídia e grandes empreiteiros; descaso com a saúde, a educação, a reforma agrária, o meio-ambiente e, finalmente, a cultura.

     Aqui estamos nós, os da contramão, que rejeitamos sem meias palavras a Casa Grande, que continua dando ordens, mesmo que seja pela boca de outros; e que também rejeitamos os novos aspirantes a senhor de engenho. Aqui estamos nós, tentando revelar, na conjugação da arte com a política, este velho “método para neutralizar os antagonismos”, sobre o qual já alertava Angela Mendes de Almeida em 1968! Neste contexto muito difícil se dá a batalha das ideias no campo cultural e artístico. É este mesmo contexto que moldura o debate sobre o extravagante modelo de financiamento da cultura baseado na renúncia fiscal, que transfere competências e recursos do setor público para o privado, ápice da política neoliberal que alguns imaginam morta e enterrada. Antigos e novos meio-rebeldes e meio-críticos estão dando algumas cartas, criando assim uma perigosa sensação de que as coisas estão realmente mudando. O risco é novamente sermos privados do direito, mínimo, ao dissenso. Não é aceitável que em todas as bolas divididas (a metáfora futebolística vai por conta do novo “espírito do tempo”) o governo, a maioria legislativa e os apoiadores habituais fiquem do lado mais forte. Não é aceitável, mas é perfeitamente compreensível à luz da conhecida “conciliação por cima” que tem marcado a história nacional.

     No modestíssimo campo da arte e da cultura há quem faça o movimento de resistir, denunciar e inventar formas que tornem visível este escândalo transformista, impregnado com frequência de prepotência e boçalidade. Tentamos demonstrar esta abdicação, esta integração passiva, esta anemia crítica apelidada, entre outros eufemismos, de “política do razoável”. Do outro lado, além desta nova casta, dá-lhe massacre, seja das novas ou das antigas seitas, e também da televisão, que mente e distorce com a desfaçatez e a vulgaridade típicas dos poderosos e impunes, impondo padrões ao mesmo tempo que repete a velha cantilena, liberal e abstrata, da “liberdade de expressão”. O mundo da mercadoria, do consumo e da cultura industrializada se renova. A luta de classes também. Diante disto, a arte e a cultura não fazem milagres, ou alguém ainda tem essa ilusão? Mas também não estão condenadas a ser agentes da pacificação social. Já se disse que artista é sempre de oposição. Há dúvidas sobre a veracidade da frase, mas no momento, é o que se impõe.

*Pesquisador teatral e diretor da Kiwi Companhia de Teatro