Crimes de Maio e a Democracia das Chacinas – Desafios Atuais

 Mães de Maio

Frente à persistência da barbárie, o fato é que a cada dia nos desiludimos
mais e mais com isso que insistem em chamar de “democracia”.

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Cordão da Mentira, em 1º de Abril de 2012. Foto de Thiago Mendonça

Apontamentos (in)conclusivos

    Até hoje, cinco anos depois de maio de 2006, não há um relatório oficial apurando todos os fatos e mortes ocorridas durante esse período. É inaceitável que uma crise aguda que resultou em centenas de mortes e ataques nas ruas, dezenas de rebeliões no sistema prisional e a paralisia e amedrontamento da maior metrópole da América do Sul, entre outras importantes cidades, não tenha motivado os governantes do estado de São Paulo nem de qualquer outra instância a realizarem qualquer procedimento público rigoroso, imparcial, célere e transparente para dar uma resposta unificada à população sobre o que aconteceu realmente, e o que deveria ser feito a respeito. Reproduz-se assim, em pleno dito “Estado democrático de direito”, os crimes autoritários de lesa-verdade e de lesa-justiça, tão recorrentes em toda a história do Brasil…

    Não tem sido outra a razão da persistência incansável de nosso movimento buscando, ainda em 2011, pelas vias estaduais e federal (na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e no Ministério da Justiça), a convocação de uma Audiência Pública direta com o governador do estado de São Paulo, Sr. Geraldo Alckmin, e com os respectivos chefes da Segurança Pública do estado. O mesmo Sr. Geraldo Alckmin, que na época, recém-saído do governo paulista para concorrer às eleições presidenciais, já se esquivava de qualquer responsabilidade sobre os ocorridos cujas causas foram produzidas durante a sua gestão do estado.

Veja um trecho do documentário no canal de internet Dateline da TV Americana NBC.

   A conclusão que se tira de tudo o que tem acontecido até o presente momento, conclusão baseada em muitos documentos e elementos concretos como estamos mostrando nesse texto, é que:

     Os Crimes de Maio de 2006, mais do que uma demonstração de uma suposta força do PCC, como se diz por aí, revelaram na verdade um Estado completamente envolvido nas tramas da violência contra sua própria população, a qual suas instituições e agentes dizem “representar”, “proteger” e “assegurar direitos”.

     Afinal, o Estado tem revelado não só permitir, mas, na prática, participar ativa e ser totalmente conivente com a tão alardeada “corrupção” que fortalece as verdadeiras facções criminosas; o Estado tem gerido seu sistema prisional multiplicando o número e a opressão contra detent@s e, quando lhe interessa, realizando ou quebrando acordos com as facções prisionais como ele bem entende; o Estado não tem dado mínimas condições, muito menos segurança, para a grande maioria da população, nem mesmo para muitos de seus próprios agentes públicos – geralmente aqueles mais pobres escalados para fazerem os trabalhos mais pesados.

     Pelo contrário, o Estado tem costumado optar, e em maio de 2006 mais uma vez optou, pela reação violenta e pelo massacre de determinada parcela da população como “resposta” “preventiva” a uma situação de crise interna e/ou externa, aprofundando a violência pela qual seus agentes já agem cotidianamente há muito tempo. E, ao acobertar os Crimes de Maio, ou simplesmente fingir investigá-los – para ganhar tempo e driblar a sua própria lei – o Estado na verdade vem mantendo, ampliando e legitimando o corporativismo e a impunidade total de seus agentes, na prática livres para matar todos que eles consideram “suspeitos”.

Grupo fundador do Movimento Mães de Maio, em 31/10/2010. Foto Ali Rocha

São Paulo hoje

     O resultado é que São Paulo hoje se encontra em uma situação igual, se não pior, à que estava na véspera dos Crimes de Maio. Os esquemas de “corrupção” – que na verdade são os mecanismos normais e corriqueiros, fundamentais – que sustentam o alto crime organizado, ligado ao Estado, persistem. E suas tramas são cada vez mais sofisticadas…

    A sociedade paulista – principalmente nas suas periferias afora, e até mesmo os próprios agentes públicos da parte mais pobre da cadeia estatal – continuam vulneráveis a inúmeras situações de risco à integridade física e psíquica, alimentando-se o ciclo vicioso da violência policial (pressão, abusos, torturas, aprisionamento em massa, execuções em série).

     Mesmo o decréscimo das taxas de homicídio no estado são questionáveis, como já vimos, e todos nós sabemos muito bem que não tem sido nenhuma melhora da atuação policial que tem gerado isso, e a que preço tal mudança está se dando… O modelo de gestão da segurança pública adotado no estado de São Paulo nos últimos tempos, diferente das já criticadas Unidades de Polícia “Pacificadora” (UPPs), que vêm sendo adotadas no Rio de Janeiro e outros estados, por aqui tem-se deliberado uma combinação perversa composta pela A) expansão acelerada do encarceramento em massa[1](o sistema prisional paulista atualmente tem cerca de 170.000 pres@s, de um total de aproximadamente 495.000 em todo país); B) redução formal das estatísticas de homicídios sob métodos espúrios; C) Ampliação das frotas e dos quadros de policiais, cada vez mais armados com equipamentos de vigilância, monitoramento e de repressão de alta tecnologia (o quê não tem significado menor letalidade, muito ao contrário); D) a multiplicação de Operações Policiais em Favelas – via de regra relacionadas aos interesses da especulação imobiliária; E) Operações Policiais violentas casadas ao enraizamento e proliferação (com forte propaganda) difusa dos tais Conselhos Comunitários de Segurança(Consegs), que têm se instalado em diversos bairros promovendo alianças efetivas entre quadros gestores da polícia e as elites locais (comerciantes, políticos locais, subprefeituras, clientelas diversas etc.), forjando-se crescentemente um questionável “diálogo” “cidadão” entre moradores e policiais, ditas “pessoas de Bem”, no mesmo espaço em que se fortalecem os ideais de “tolerância zero”, “repressiva” e “punitiva”, “contra a bandidagem”, “contra invasores”, “contra poluidores do meio-ambiente” etc. Uma experiência crescente, sobre a qual não poderemos tratar em profundidade nesse texto, mas que tem fomentado consigo, em muitos casos, uma ideologia repressiva e punitiva que, ato contínuo, tem se voltado contra os próprios moradores das comunidades-alvos – principalmente seus jovens pobres e negros alvos da polícia, além das famílias na mira dos despejos imobiliários -, contribuindo para a persistência de injustiças e opressões, dentro e fora dos presídios[2].

     De toda forma, a violência e a letalidade policial têm permanecido em patamares elevados – conforme demonstrou a cartilha publicada em 2011 pela própria Ouvidoria da Polícia de São Paulo: em 2009 houve um aumento de 41% do número de casos de “resistência seguida de morte” frente a 2008: 524 pessoas foram mortas pela Polícia Militar de São Paulo, contra 397 no ano anterior. Acabam de sair também dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP-SP) afirmando que “homicídios aumentam pelo 4° mês seguido no estado de SP nos últimos meses de 2011”. E ainda, no primeiro semestre de 2011, o número de 40 ocorrências de “RSM” praticadas pela ROTA aumentou frente ao mesmo período de 2009 (21 casos) e 2010 (36 casos). Este Batalhão cujo sítio na internet celebra diversos massacres populares da história do país e cujo Comandante não tem vergonha de fazer apologia aos “Boina-Negras” com seu “Deus no Coração e a Pistola nas Mãos”.

      Se os agentes policiais e paramilitares ligados ao Executivo têm essa conduta, de prender em massa e, muitas vezes, matar sumariamente, o Sistema Judiciário acaba por fomentar a condenação extensiva desses jovens ao terror dos presídios, e também a impunidade dos responsáveis por execuções, às vezes chegando ao ponto de recomendar aos policiais que aprimorem suas miras para matar, enterrando assim qualquer esperança nessa Justiça, junto aos corpos dos nossos jovens presos e mortos em massa. Como sempre dizemos: “a Polícia prende e mata, o Judiciário enterra!”.

      Em resumo, a atitude do Estado frente aos Crimes de Maio, em particular, e a toda esta Democracia das Chacinas, em especial no estado de São Paulo, só tem feito piorar uma situação que ele próprio criou e reproduz. Situação que segue implodindo as cidades por dentro, de seus bairros, comunidades e instituições; situação que sempre tende a explodir pelas ruas novamente, nas tragédias que se sucedem em “baixa intensidade” ou estouram em larga escala, das piores maneiras possíveis.

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Ato lembrando um ano dos crimes de abril de 2010, na Baixada Santista, quando 26 pessoas foram mortas em 24/04/2011. Foto Danilo Dara

Próximos passos das Mães de Maio

     De nossa parte, frente a tal cenário, seguiremos a nossa luta pelo direito à memória, à verdade e à justiça de todas as vítimas históricas do Estado brasileiro, ontem e hoje. Neste sentido são três as prioridades de nosso movimento para o próximo período: 1 – Seguir lutando, em todas as instâncias nacionais e internacionais possíveis, pela federalização das investigações dos Crimes de Maio de 2006 e dos Crimes de Abril de 2010, o devido julgamento e punição dos responsáveis (a começar pelo próprio Estado), bem como a legítima reparação das vítimas e familiares; 2 – Fortalecer, em nível nacional e internacional, a “Campanha pelo fim dos autos de resistência seguida de morte” e afins em todo o Brasil, esta verdadeira licença para matar que perpetua um efetivo estado de exceção contra a população pobre e negra do país – abolição que, aliás, está prevista no Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3) como uma proposta das Mães; e 3 – Continuarmos engajad@s na luta pelo direito à memória, à verdade e à justiça de todos os massacres promovidos pelo Estado, em tempos de ditadura ou de democracia, com destaque particular, em 2012, para ampliação do alcance das Comissões de Verdade (e Justiça) esboçadas até aqui; ao aniversário de 20 anos do Massacre do Carandiru; e aos 6 Anos dos Crimes de Maio. Desta vez deveremos fazer uma grande atividade nacional, em Maio de 2012, na Baixada Santista, juntamente com nossos companheiros e companheiras da Rede Nacional de Familiares e Amig@s das Vítimas do Estado Brasileiro.

     Frente à persistência desta barbárie, o fato é que a cada dia nos desiludimos mais e mais com isso que insistem em chamar de “democracia”. Enquanto muitos vibram hipnotizados à espera da próxima medalha nacional ou da próxima Copa do Mundo, de nossa parte só a luta mesmo, e o sonho de outra sociedade, é que nos dão forças para sobreviver em meio a este verdadeiro inferno.

Fonte: Periferia grita. Mães de Maio. Mães do cárcere, pp. 308-311.

Maio 2011

[1] Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), o número de prisioneiros no Brasil já atinge quase 
500.000 pessoas, tendo triplicado nos últimos 15 anos. E São Paulo representa mais de um terço deste contingente, 
tendo crescido aceleradamente nos últimos 10 anos, atingindo hoje cerca de 175.000 pres@s. Enquanto a população 
do Estado de São Paulo cresceu cerca de 25% entre 1994 e 2010, a população prisional, somando os presos existentes 
na SAP e na SSP, cresceu 197%, passando de 55 para 163 mil presos em 2010.

[2] Sobre a maneira como os Consegs têm se multiplicado, e o papel que têm cumprido, em diversas comunidades
populares, pretendemos tratar com mais atenção numa outra oportunidade, inclusive se possível comparando-o com 
outros novos modelos de “políticas democráticas de segurança pública”, como as Unidades de Polícia Pacificadora 
(UPPs) do Rio de Janeiro, ou as Polícias Cidadãs e seus projetos sociais tipo “Fica Vivo!” e “Juventude e Polícia” 
em Belo Horizonte, e outras experiências afins pelo país.