Navalha afiada em fino veludo

Rodrigo Manzano e Ana Ignácio

“Eu volto logo”, disse Eduardo à sua irmã, Regina, pouco antes de pegar um agasalho e ser levado por três homens, de Santos, no litoral paulista, a São Paulo, para “dar explicações” sobre sua militância política. Em julho, fará 37 anos que ele foi morto. Regina não se esquece da despedida – passou aquela noite debruçada sobre a janela, à espera do irmão que não retornava. A mãe de Eduardo, Iracema, nunca se recuperou da ausência do filho, mesmo nos últimos dias de sua vida. Sua companheira à época, Angela, no exílio em Paris, ainda se emociona ao falar sobre Eduardo. Os amigos não o esquecem.

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    Luiz Eduardo Merlino, 23 anos. Jornalista. Militante do Partido Operário Comunista (POC). Amante de jazz e Fernando Pessoa. Bom texto. Passagens pelo Jornal da Tarde, Folha da Tarde, jornal Amanhã e Jornal do Bairro. Esse é um esboço a lápis do rosto que se revela por trás de um nome – entre tantos outros – que foram vitimados pela violência policial na Ditadura Militar no país.

    O rosto, agora, começa a ser preenchido à tinta. Desde o ano passado Merlino é um personagem que luta contra o esquecimento. Uma ação movida pela família dele espana a grossa camada de poeira que assentou sobre sua memória: Regina Maria Merlino Dias de Almeida e Angela Mendes de Almeida entraram na Justiça com uma ação civil declaratória contra o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra. Elas não pedem nada. Apenas o reconhecimento, pela Justiça, da participação de Ustra na tortura e morte de Merlino no DOI-CODI de São Paulo, na segunda-feira, dia 19 de julho de 1971. A audiência estava marcada para o dia 13 de maio, mas foi adiada por conta de um recurso apresentado no Tribunal de Justiça por Ustra, que alega prescrição do crime, além de evocar a Lei de Anistia, de 1979.

    O processo abre um precedente inédito no país, ao determinar que crimes de tortura e assassinato político não prescrevem e, sobretudo, por responsabilizar diretamente uma pessoa, não o Estado, pela morte de um ex-militante. A nova audiência depende de julgamento do recurso apresentado por Ustra e a previsão é que seja marcada daqui a três meses, segundo os advogados da família, Fábio Konder Comparato e Anibal Castro de Sousa. Procurado pela revista Imprensa, Ustra não retornou os contatos.

Merlino, jornalista

    Merlino era discreto. Os grossos aros dos óculos, o bigode e as escolhas clássicas no vestuário não permitiam grandes arroubos de personalidade. Não que a faltasse. Entre os colegas de redação, os detalhes da convivência afetiva são nítidos, apesar do tempo que passou. Luiz Roberto Clauset – que trabalhou com Merlino na redação da Folha da Tarde – lembra-se do colega como “uma pessoa respeitada, jovem, com um texto aprimorado”, herdado da experiência inovadora da equipe pioneira do Jornal da Tarde. Nos traços da memória, resta a imagem de um jornalista sério, mas dotado de um humor extraordinário. O jornalista recorda que na redação o clima de trabalho era “iluminado” e que havia total independência para as equipes. “De uma hora para outra, o jornal foi parar nas mãos da extrema direita”, lembra-se, “e uma das primeiras coisas que fizeram em junho de 1969 foi demitir, não sei com que critério. O Merlino e eu formos chamados na sala do novo diretor, Antonio Ágio, e nos informaram que estávamos sendo demitidos”. Na mesa onde se passou a conversa, um revólver. “A arma simbolizava bem o que eles queriam”, afirma Clauset.

    A militância política e o ofício no jornalismo eram duas faces de Merlino que se sobrepunham, mas não se confundiam. Frei Betto, que o conheceu também na redação da Folha da Tarde, lembra-se que, embora se encontrassem na redação, um não tinha ideia da militância do outro: Merlino, no POC; Frei Betto, na Ação Libertadora Nacional (ALN). “Em tempos de ditadura, quando ignorar a militância alheia é um dos princípios básicos de sobrevivência, eu não tinha ideia da atuação de Merlino”, afirma. “Guardo dele a imagem de um jovem sério, profissional dedicado, responsável e sereno”, recorda-se. A jornalista Rose Nogueira, também da equipe da Folha e amiga de Merlino, recorda da atenção dada pelo colega no trabalho cotidiano. “Ele me ajudou muito a fechar matérias”, lembra Rose, “até hoje olho para o lado e parece que Merlino está ali, sentado à máquina de escrever”.

    Bernardo Kucinsky e Joel Rufino dos Santos lembram-se da convivência com Merlino no Amanhã, um pequeno jornal alternativo. Kucinsky conta que foi de Merlino a ideia de publicar no exterior o livro “A violência militar no Brasil”, escrito por ele e Ítalo Tronca. Kucinsky entregou a Merlino os originais, na noite de Natal de 1970, no Café Cluny, em Paris. Ao saber da morte de Merlino, Kucinsky alimentou a dúvida se o assassinato do amigo tinha a ver com o envolvimento dele na publicação do livro. Rufino conta que varavam as noites em fechamento do jornal. “Eu falaria muito sobre meu amigo”, afirma ele que se recorda do dia em que Merlino conheceu sua família, “suburbana, pobre, evangélica”. Ele se enterneceu, não olhou de cima. Talvez sentisse falta de uma sociabilidade popular”, afirma Rufino.

    Para fazer frente ao JT, a Folha da Manhã decidira cobrir mais intensamente o movimento estudantil. Merlino foi escalado para fazer uma reportagem sobre o XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna, em outubro de 1968. Na ação policial que desmontou o Congresso e prendeu estu dantes, Merlino foi levado pela polícia para prestar depoimento, junto com colegas de outras redações. No final do texto publicado no dia 14 de outubro, Merlino relatou: “Enquanto seguia para casa lembrava que teria uma cama com colchão e um cobertor; ao invés do chão frio e da umidade da Penitenciária Tiradentes onde ficaram mais de 700 estudantes”. Merlino havia escapado, por enquanto, da violência dos órgãos de repressão.

Merlino no Tamborim. Charge de Chico Caruso Folha da Tarde, 14 de maio de 1969.

 Prisão, tortura e morte

    Mas não escapou ao destino trágico no dia em que a polícia foi buscá-lo na casa da mãe, no nº 13 da rua Itapura de Miranda, em Santos, no dia 15 de julho de 1971. Torturado durante 24 horas, morreu sem que lhe prestassem atendimento médico. Caso fosse atendido, as pernas deveriam ser amputadas – e a tortura ficaria evidente. Preferiram sua morte. Sem notícias de Merlino, a família esperou durante quatro dias. O cunhado dele, Adalberto, que era delegado de polícia, furou o cerco no Instituto Médico Legal. “Encontrei o corpo do Eduardo. Ele foi torturado”, avisou Adalberto à sua família. A mãe e a irmã de Merlino subiram a serra. Ao saber da morte, d. Iracema separou algumas peças de roupa para o filho. Não tinha entendido completamente a notícia.

    (…) Eduardo Merlino tinha acabado de voltar da França, para onde tinha embarcado legalmente com o objetivo de se aproximar da IVª Internacional, alguns meses antes. Angela, sua companheira, também havia ido, ilegalmente, numa viagem que demorou 15 dias, passando pelo Uruguai, Argentina, Chile e, enfim, França. Em Paris, Merlino e Angela eram, mesmo distantes do Brasil e da violência dos militares, Nicolau e Tais, seus codinomes. “Por questões de segurança, não tínhamos contato com nenhum brasileiro”, lembra Angela. Merlino, apesar do perigo no Brasil, resolveu voltar. Angela ficou. Ao saber da morte do companheiro, apenas em agosto e depois de inúmeras tentativas frustradas de contato, Angela vagou pelas ruas do verão europeu, retornando ao hotel. “Eu tomei a decisão de continuar fazendo aquilo que tínhamos combinado”, afirma Angela. Hoje, se lembra dos traços da personalidade de Merlino e do romance que manteve com ele.

    “Foi um encontro amoroso, sim, mas a gente dava uma importância secundária a isso. Estávamos unidos pela militância”, revela. Os detalhes da personalidade do jornalista se misturam. “Ele gostava muito de samba”, lembra Angela, intercalando o lado mais personalista de seu companheiro com o aspecto rigoroso de sua atuação como militante.

    (…) Em nenhum momento desses últimos 37 anos esqueceu-se de Merlino. Seu filho chama-se Nicolau.

Contra o esquecimento

    Durante muito tempo, a família de Merlino ainda sofreu com a perseguição silenciosa dos militares. Adalberto, o cunhado que furou a segurança do IML e encontrou o corpo, nunca foi promovido por merecimento. A mãe e a irmã conviviam com a observação constante de estranhos diante da casa que, nem mesmo na missa de 7.º dia da morte de Merlino, afastaram-se da família. “Os três homens que foram buscar meu irmão em casa estava no primeiro banco da igreja e ao final da missa vieram nos dar os pêsames”, lembra Regina. D. Iracema não os reconheceu e os cumprimentou. “Eu os reconheci na hora e não fiz o mesmo”, recorda. Ao ouvir da filha quem eram eles, a mãe de Merlino disse: “quem sabe eles não ficaram com remorso?”

    Todos os familiares, amigos e colegas de Merlino, ouvidos pela revista Imprensa lembram-se dele com uma cristalina memória, como se o tempo tivesse parado nos últimos momentos do contato com ele, seja na militância, na redação ou na vida cotidiana. A morte do jornalista chocou a todos. “Era uma violência desproporcional”, afirma Clauset. Alípio Freire, jornalista que também estava preso quando da morte de Merlino, recorda que o peso da notícia se abateu sobre muitos militantes. “Era muito duro. Uma coisa é alguém morrer em combate, outra é morrer torturado como foi o caso dele e de outros companheiros”, afirma. Rose Nogueira recorda que, ao saber da morte, desandou a chorar. “Bater no Merlino é uma covardia muito grande, tamanha era a delicadeza dele, o respeito humano que ele tinha”, recorda, “sempre penso nele. Me dá muita saudade, ele tinha uma bondade infinita”, completa. Ao ser avisada que seu amigo havia morrido, Rose Nogueira ouviu de Ricardo Gontijo, portador da notícia, que Merlino era um “revolucionário de veludo”. O ator Sérgio Mamberti, amigo de Merlino em Santos, lamenta que a violência da ditadura tenha atingido pessoas como ele. “A gente recorda com emoção esses momentos. Foram pessoas que deram suas vidas de forma injusta, porque poderiam ter oferecido muito mais para a sociedade com seu trabalho”, afirma.

    À espera do resultado do julgamento do processo que recai sobre Ustra, todos eles hoje veem renascer a memória de Merlino. Caso seja positiva, a ação contra o coronel abre um precedente histórico no país a favor da reconstituição dos fatos que se passaram nos anos de chumbo. Quando as manchetes anunciarem a responsabilidade na morte do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, os moradores da rua que leva seu nome, em Santa Cruz, no extremo da zona oeste do Rio de Janeiro, terão a oportunidade de saber quem foi ele, o que ele fez e o que fizeram com ele.

Fonte: Revista Imprensa – Jornalismo e Comunicação

Julho 2008 – Ano 21 – n.º 235