Polêmicas sobre rupturas e permanências da ditadura

 Angela Mendes de Almeida

     O Coletivo Merlino sempre trabalhou na perspectiva de que a violência desenfreada dos agentes policiais contra as populações dos territórios da pobreza é a prova viva da permanência de elementos da estrutura ditatorial. Para nós, a impunidade dos crimes dos torturadores da ditadura é um dos mais importantes fatores da impunidade de hoje. Por isso a primeira homenagem pública a Luiz Eduardo da Rocha Merlino, torturado e assassinado no DOI-CODI de São Paulo, em 19 de julho de 1971, foi feita através da criação do site “Observatório das Violências Policiais” de São Paulo (www.ovp-sp.org),[1] em 2005, que justamente procurava esmiuçar e divulgar essa violência cotidiana.

Em frente ao Tribunal de Justiça de São Paulo, manifestação pela condenação do coronel Ustra, 23/09/2008. Foto João Zinclair.

     Diante disso é possível definir o Brasil como “um Estado Democrático de Direito, com democracia política limitada”?[2] A banalização da tortura nas delegacias e prisões, bem como das execuções sumárias praticadas por tropas da polícia, por policiais de folga e por grupos de extermínio formados por policiais é incentivada pelo acobertamento que lhes concede, na maioria dos casos, o Poder Judiciário. Além disso essas violações contam com um incentivo vigoroso de programas televisivos e, em certas circunstâncias, até de autoridades estaduais. Assim, a impunidade de ontem, o fato de que até hoje nenhum torturador da ditadura tenha sido investigado e julgado criminalmente em virtude da Lei da Anistia de 1979, é uma potente garantia para a impunidade de hoje.

     O aparato repressor do Estado brasileiro persegue os habitantes das favelas e periferias pobres com invasões militarizadas em suas comunidades e abordagens policiais truculentas, que podem se converter em torturas e tratamentos cruéis e degradantes, degenerar em encarceramentos, muitas vezes injustos e “plantados” por provas forjadas, ou, no limite, em execuções sumárias e extrajudiciais, eventualmente seguidas de ocultamento de cadáveres. Este tratamento, ilegal do ponto de vista de qualquer legislação, seja ela ditatorial, seja ela democrática, está banalizado, naturalizado, integrado à “normalidade” da sociedade brasileira.

     A permanência da estrutura ditatorial na área da segurança pública não é a única razão para que, cotidianamente, as leis do Estado Democrático de Direito brasileiro sejam conspurcadas pelas violações aos direitos humanos perante a indiferença geral. Pesa sobre a sociedade brasileira, como uma marca nas mentalidades, a memória da escravidão, o velho estilo de convivência social entre as classes herdado do regime escravista. No limiar da data, postergada até o limite do possível, da abolição formal da escravatura, as classes dominantes, temerosas, anteviam levantes como os do Haiti, ou hordas de ex-escravos perambulando pelas cidades e campos e pilhando o patrimônio dos que tinham propriedades. É essa imagem que ainda guardam os brasileiros em relação aos pobres, sobretudo negros, que não estão incluídos no núcleo duro do circuito do consumo. O velho estilo de convivência social entre senhores e escravos incorpora à atualidade a concepção ideal de parâmetros morais distintos para os crimes e atos infracionais, conforme sejam eles praticados por pessoas das classes média ou alta, ou pessoas desse conjunto excluído. Estas parecem constituir um “outro ser” nacional, que não o conjunto dos “autênticos” cidadãos brasileiros. Seus crimes são “hediondos” e sua recuperação impossível, na verdade indesejável. Esse “outro ser” nacional povoa as prisões onde praticamente só há lugar para pobres, em grande maioria negros.

     Tudo isso é assimilado pela população brasileira, sob a batuta da mídia, como “normalidade”. Nas grandes crises de segurança, por ocasião de rebeliões em presídios, invasões de favelas ocupadas por traficantes, assassinatos em série de policiais, reaparecem, mesmo na esquerda, os clichês de “bandidos”, que são os banidos da sociedade de consumo, vivendo nas periferias, sempre suspeitos de serem criminosos, de estarem a ponto de pilhar o patrimônio dos ricos. E muitas vezes a esquerda assume estes clichês. Para um certo marxismo, embora seres humanos, eles não passam de um substrato do lumpesinato.

    A natureza humana é reconhecida nesses habitantes dos territórios da pobreza quando recebem a Bolsa Família, ou quando trabalham nas ocupações mais humildes do “servir”. Porém, quando pelas dificuldades que enfrentam para a sobrevivência, entram para a categoria dos trabalhadores informais ou ilegais, quando cometem um delito ou circulam na proximidade de pessoas que estejam em situação ilícita, passam para a categoria de “suspeitos” ou de “bandidos”. E o “bandido” não é ser humano. Daí a palavra de ordem da opinião pública obscurantista: “Direitos humanos para humanos direitos”. Programas televisivos ou mesmo palavras soltas na imprensa martelam a tecla do caráter “não humano” dos “bandidos”, tal como no século XIX se argumentava que os escravos não tinham alma. Arrasar com o “bandido”, ou seja, executar sumariamente, torturar, bater, humilhar são atos propugnados publicamente sem que nenhuma ação penal seja sequer esboçada, tal qual existem para os que fazem apologia do nazismo ou os que manifestam preconceito racial. A apologia da violação dos direitos humanos dos “bandidos”, vale dizer, dos pobres, é feita abertamente, digerida em falas e discursos que a naturalizam.

     A área da segurança pública, na qual se cometem todas as barbaridades em termos de violações dos direitos humanos contrárias à legislação escrita, é uma zona de sombra, que só é analisada à parte, isolada, como fenômeno auto-referente, parecendo não ter nada a ver com a vida parlamentar, eleitoral, cultural e com todos os debates e polêmicas que permeiam a avaliação da situação social e econômica do Brasil atual.

    No entanto alguns conceitos avançados em discussões recentes podem esclarecer melhor o lugar ocupado pela zona sombria da segurança pública, onde só há lei para punir os pobres. Nos dois últimos anos, na luta por memória, verdade e justiça que permeou a batalha pela instalação de uma Comissão da Verdade (e da Justiça), pelo cumprimento integral pelo Estado brasileiro da sentença da Corte Interamericana no caso da Guerrilha do Araguaia, que declarava a não validade da auto-anistia promovida pelo Estado ditatorial, e na própria luta pela revisão, reinterpretação ou anulação da Lei da Anistia de 1979, surgiram entre os lutadores destas causas algumas polêmicas que podem fazer compreender melhor como se dá a permanência das estruturas ditatoriais.

Rio de Janeiro, assassinato de Edson Luís, abril de 1968. Fonte: Arquivo em Imagens,Última Hora, 1997.

Rio de Janeiro, assassinato de Edson Luís, abril de 1968. Fonte: Arquivo em Imagens, Última Hora, 1997.

    Por ocasião do Seminário “A exceção e a regra”, promovido pela Kiwi Companhia de Teatro, em julho de 2012, surgiu a caracterização do Brasil como um Estado de exceção permanente a partir de uma discussão teórica que vem de muitos textos, debates e seminários anteriores. Resumida a discussão no site da Carta Maior,[3] a caracterização suscitou a indignação do governador Tarso Genro, que no mesmo site, refutou veementemente a conclusão, definindo o Brasil como “um Estado Democrático de Direito, com democracia política limitada, como em todas as democracias.”[4] Mas justamente não se tem conhecimento de nenhum outro Estado Democrático de Direito, ou seja, uma democracia parlamentar, em que seus policiais matam os cidadãos do país, em total impunidade, muitas vezes incentivados pelos governos estaduais, como no caso de São Paulo, e completamente ignorados das autoridades do governo federal. Segundo a defensora pública Daniela Skromov, de acordo com as estimativas internacionais, de todas as mortes violentas anualmente, são aceitáveis que 3% sejam de responsabilidade de agentes do Estado. Em São Paulo são 20%.[5] E nos outros estados da Federação pode ser até pior, já que o embaralhamento das estatísticas de crimes de agentes de Estado na grande bacia dos homicídios em geral constitui um eixo fundamental da política da zona sombria da segurança pública.

    A idéia atual de Estado de exceção é vista como uma forma de governo do capital em prol do seu desenvolvimento, que coloca de lado e superpõe aos mecanismos típicos da democracia parlamentar, no qual há o voto do cidadão ou a participação popular, formas legais de administração de populações específicas, criando Estados dentro do Estado nacional, onde as leis nacionais ficam suspensas e substituídas por normas especiais. E o que é a Lei Geral da Copa senão um exemplo escrachado dessa forma de governo? E o que é a situação das obras da Usina Hidroelétrica de Jirau, em Rondônia, com trabalho escravo e repressão permanente da Força Nacional de Segurança Pública, onde após uma greve violentamente reprimida, 12 operários presos desapareceram? E o que é a Portaria 303 da Advocacia-Geral da União, que prevê que as demarcações e homologações de terras indígenas podem ser revistas sem consulta prévia às comunidades, caso haja interesse de obras militares e grandes empreendimentos estratégicos, inclusive agropecuários? Os exemplos poderiam multiplicar-se.

    E nas áreas de segurança pública de todos os estados da Federação tem vigência a lei que serve para prender e condenar os pobres por crimes, no geral, contra o patrimônio ou ligados ao tráfico de drogas, quando exercido pelos pobres. Mas não serve para retirá-los da cadeia no prazo legal, não serve para permitir a fiscalização da sociedade civil para coibir as torturas em presídios e delegacias, bem como para condenar os autores de violações que são agentes do Estado. Todos os dispositivos legais que favorecem a justiça para os pobres são bloqueados, corroídos ou ignorados.

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Em frente ao Tribunal de Justiça de São Paulo, manifestação pela condenação do coronel Ustra, 23/09/2008.

    Outra polêmica surgida, cujo desenrolar pode demonstrar a ligação com a primeira, é a que se refere ao uso da expressão “ditadura civil-militar”, considerada pelo defensores da já consagrada expressão “ditadura militar” como um “modismo”. Estes reconhecem a participação civil, “fartamente documentada”, na preparação do golpe de 1964, mas consideram que o acoplamento do adjetivo “civil” minimiza a responsabilidade das Forças Armadas que justamente devem ser “democratizadas”. Tratou-se de “um regime militar, comandado por altos oficiais; um regime que contou sim com a cumplicidade do grande capital nacional e estrangeiro, e que o beneficiou; e que exatamente por esta razão vem sendo defendido pela mídia e por partidos de direita como DEM e PSDB.”[6]

    Se há o reconhecimento da participação civil no golpe e depois, no governo, de “sócios e cúmplices civis”, porque a denominação não pode ser “civil-militar”? Para os que, ao contrário, sustentam que é imprescindível o adjetivo “civil”, do que se trata, além de caracterizar o passado, é de “entender quais os vínculos das estruturas presentes com o passado, seja em nossos meios de comunicação, em nossos aparatos financeiro e industrial, seja na lógica de extermínio que continua a reger o cotidiano de nossas periferias”.[7]

    O fato é que, no emprego da expressão “ditadura civil-militar,” agrupam-se os que não acreditam propriamente no “fim da ditadura”, que colocam ênfase nas permanências. Os espaços de arbitrariedade acima referidos, onde a lei do Estado Democrático de Direito não tem vigência, são um dos aspectos da materialidade da persistência de muitas estruturas ditatoriais. Mas os civis “sócios e cúmplices” não ficaram parados. Além de colaborar no golpe, eles aproveitaram o período ditatorial para criar a estrutura de imprensa que temos hoje, com a luz brilhante da TV Globo, que, na ausência de uma educação pública de qualidade, exerce a função de informar e “educar” a população. Eles prepararam o encadeamento dos postos de poder com os interesses da elite, materializado na nossa pesada forma parlamentar, atualmente completamente infensa a qualquer mudança. Não é senão por outra razão que se encontram ainda em postos-chave algumas das figuras emblemáticas da ditadura, como Paulo Maluf, Delfim Neto, José Maria Marín, José Sarney.

    O “fim” da ditadura permitido no Brasil foi o consagrado na Lei da Anistia de 1979, que pretendeu colocar uma pedra no passado, anistiando torturados e torturadores. Não por acaso o Supremo Tribunal Federal reafirmou, em 2011, a interpretação que consagra a impunidade dos torturadores. Revolver o passado que se quis represar é trazer à luz todas as cumplicidades com a violência de personagens e de instituições que estão hoje em plena atuação. Com a Lei da Anistia de 1979 e depois o reinício do funcionamento da democracia parlamentar, todos se jogaram nessa intensa luta pelo poder, inclusive a esquerda, empurrando para baixo do tapete todas as barbáries e arbitrariedades da ditadura, cuja reparação deveria ser “depois” regulamentada.

    De modo geral a esquerda interpretou esse “fim” da ditadura permitido como uma vitória da luta democrática, quando não da luta sindical. Pensando construir um partido dos trabalhadores que ao chegar ao poder retiraria o Brasil da desigualdade e da miséria, nada mais fez do que colaborar ativamente para cimentar o escudo da desmemória e do esquecimento. O Brasil surgido da Constituição de 1988, com a sua “democracia política, inclusão social e educacional massiva”, não é “o início da revolução democrática no Brasil.”[8] É a continuidade do desenvolvimentismo posto em prática pelos militares com tanto sucesso econômico, que a conta-gotas tenta diminuir a desigualdade sem ferir os interesses dos donos do país e conservando a estrutura policialesca geradora de injustiças. Cada fio que hoje se desenrola vai mostrando mais e mais as continuidades e apagando a idéia de ruptura.

[1] Em 2006 o Observatório das Violências Policiais foi integrado ao CEHAL (Centro de Estudos de História da América Latina) da PUC/SP.

[2] Ver Tarso Genro, ver “Estado de exceção no Brasil?” http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20609&boletim_id=1294&componente_id=21152

[3] Bia Barbosa, “Brasil forjado na ditadura representa Estado de exceção permanente”. 18/07/2012 - http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20584

[4] Ver “Estado de exceção no Brasil?” já citado.

[5] “Violência dos milicos ultrapassa limites” - http://www.kaosenlared.net/america-latina/item/26177-s%C3%A3o-paulo-viol%C3%AAncia-dos-milicos-ultrapassa-limites.html?tmpl=component&print=1

[6] Pedro Pomar, “Um modismo equivocado’, Página 13, 6 de agosto de 2012.

[7] Coletivo Zagaia, “A construção da verdade ou da obrigação de combater a tradição, família e impropriedades” – Blog do Coletivo Zagaia, 24 de novembro de 2012.

[8] Cf. Tarso Genro, já citado.