Luiz Roberto Salinas Fortes

Retrato calado

“A passagem pelos subterrâneos do regime, o contato com o avesso do milagre eram, nestas condições, a ocasião de um aprendizado tão importante quanto inútil, pelo menos durante muitos anos. Mas, de qualquer maneira, experiência decisiva no interior da selvagem fenomenologia. Guinada. Depois dela, depois de termos ingressado no espaço da ficção oficial passávamos para outra figura do espírito, para o delírio em cujos breus parecem comprometidos as fronteiras entre o imaginário e o real. Tudo teria sido então pura ficção? Tudo ficará por isso mesmo? A dor que continua doendo até hoje e que vai acabar por me matar se irrealiza, transmuda-se em simples “ocorrência” equívoca, suscetível a uma infinidade de interpretações, de versões das mais arbitrárias, embora a dor que vai me matar continue doendo, bem presente no meu corpo, ferida aberta latejando na memória. (…) Contra a ficção o Gênio Maligno oficial se impõe o minucioso relato histórico e é de boa mira neste alvo que depende o rigor do discurso.”
Fonte: Luiz Roberto Salinas Fortes, Retrato Calado, São Paulo,Ed. Marco Zero, 1988, p. 24

 

Não há justiça nenhuma capaz de me julgar,” diziam os torturadores no DOI-CODI

(…) Depois, o careca divertia-se, junto com os colegas, enquanto mandava a prisioneira varrer o pátio interno do pavilhão, dizendo que mais tarde ia comer a negra e já ficando de cuecas em meio à algazarra geral. Em outra ocasião pôs-se a declamar,bem alto, singular discurso da má consciência, feito sob encomenda para nós e que girava em torno do seguinte tema: Não há justiça humana nenhuma capaz de me julgar. E, assim, quase toda santa noite, o comediante inesperadamente contemplado pelas reviravoltas da política com um público escolhido, agraciava-nos com a pequena novela da sua exuberante impunidade. (…)”
Luiz Roberto Salinas Fortes foi professor de Filosofia duas vezes preso e torturado na ditadura militar.
Fonte: Luiz Roberto Salinas Fortes, Retrato Calado, São Paulo,Ed. Marco Zero, 1988