Magistrados ignoram testemunhas e citam laudo forjado da ditadura para isentar Ustra
Apreciação de desembargadores do TJ de São Paulo se deu em sessão que extinguiu, por julgar prescrita, ação que pedia indenização para familiares de jornalista assassinado no DOI-CODI
Do El País Brasil, por Felipe Betim
Em São Paulo – 10 Oct 2019 – 22:45BRT
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) extinguiu nesta quarta-feira, 17 de outubro, um processo que condenava o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido torturador da ditadura militar brasileira (1964-1985) e idolatrado pelo presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) e seu vice, o general Hamilton Mourão, a pagar uma indenização de 100.000 reais a família do jornalista Luiz Eduardo Merlino. Ele foi torturado e morto nos porões do DOI-CODI em 1971, com apenas 23 anos. Em julgamento da 13ª Câmara Extraordinária Cível, os três desembargadores da segunda instância —Luiz Fernando Salles Rossi, Milton Carvalho e Mauro Conti Machado— entenderam que se encontra prescrita a possibilidade de que família processasse Ustra e obtivesse compensação, uma vez que a lei civil prevê um prazo de 20 anos neste tipo de ação. O crime ocorreu em 1971 e o processo foi movido pela família em 2010, 22 anos após a promulgação da Constituição de 1988, usada como marcado temporal. Ainda cabe recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF).
A ação por danos morais está sendo movida pela irmã do jornalista, Regina Maria Merlino Dias de Almeida, e sua ex-companheira, Angela Mendes de Almeida, desde 2010. Em 2012, a 20ª Vara Cível, primeira instância da Justiça, reconheceu a responsabilidade de Ustra e o condenou a pagar uma indenização aos familiares. A família deixou que a própria juíza fixasse o valor da indenização, uma vez que o dinheiro nunca foi prioridade, mas sim o reconhecimento da responsabilidade do Estado e de Ustra, segundo diz. O coronel recorreu da decisão antes de morrer em decorrência de um câncer e problemas cardíacos, em 2015. A decisão desta quarta derruba a condenação da primeira instância sob o argumento, proferido pelo magistrado Mauro Conti Machado, de que a família esperou 39 anos para entrar com o processo, 22 anos depois da Constituição.
O relator do caso, desembargador Salles Rossi, foi além. Primeiro a votar, defendeu que não havia provas nem testemunhas presenciais que indiquem que Ustra participou da tortura a Merlino durante a “chamada ditadura militar”. Além de não levar em conta o fato de que o coronel era o responsável pelo DOI-CODI, o desembargador desconsiderou o relato das pessoas que presenciaram a tortura do jornalista, sendo a principal delas a socióloga Eleonora Menicucci, ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres no Governo Dilma Rousseff (PT). Menicucci, que também foi torturada, conta ter visto o jornalista no pau de arara sob o olhar de Ustra. O magistrado também desconsiderou documentos como o da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instaurada pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a Comissão Nacional da Verdade, instaurada pelo Governo Rousseff, e a Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo. Todas reconhecem a responsabilidade do Estado brasileiro e de Ustra pela morte de Merlino.
Os documentos narram com detalhe a captura, prisão e tortura do jornalista, que trabalhou em veículos como o Jornal da Tarde e a Folha da Tarde e militava no Partido Operário Comunista (POC). No dia 15 de julho de 1971, logo depois de retornar da França, foi detido por agentes do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo (DOI-CODI/SP) na casa de sua mãe, em Santos. Testemunhas indicam que o jornalista foi submetido a 24 horas de tortura no pau de arara e, depois, abandonado em uma solitária. Sofreu gangrena nas pernas decorrente da tortura e não recebeu tratamento médico. Deixado de lado por seus algozes, acabou morrendo. O atestado de óbito, do dia 19 de julho, diz que Merlino “ao fugir da escolta que o levava para Porto Alegre (RS), na estrada BR-116, foi atropelado e, em consequência dos ferimentos, faleceu”.
Apesar do primeiro atestado de óbito ter sido contestado —”há muitas evidências da falsidade da versão de atropelamento em tentativa de fuga”, diz o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV)— o magistrado Salles Rossi salientou que o primeiro documento oficial, tido como forjado pela ditadura, deve ser considerado. O desembargador Milton Carvalho concordou com a argumentação que opta por não considerar as conclusões dos relatórios oficiais anteriores e se referiu a Ustra como “suposto torturador”. Os magistrados ignoraram também a decisão do STJ de 2014 que reconhece a responsabilidade civil de Ustra por torturas cometidas durante o regime militar.
No final, contudo, o desembargador Mario Conti Machado argumentou que a questão da prescrição bastava para derrubar a sentença da primeira instância. Assim, o entendimento unânime foi o de que havia esgotado o prazo de uma possível ação cível contra Ustra, ainda que exista no meio jurídico o entendimento de que o crime de tortura não prescreve.
Descumprimento de decisão da OEA
O debate sobre se o crime de tortura é atingido ou não pela prescrição é um dos principais pontos quando se fala em punir os torturadores da ditadura militar. Isso ocorre sobretudo em ações penais nas quais, diferentemente de processos da área cível, está em jogo a liberdade do processado. Nesses casos entra em vigor a Lei de Anistia, de 1979, fazendo com que processos muitas vezes nem sequer sejam aceitos. Foi o que aconteceu com um ação penal movida pelo Ministério Público contra Ustra pedindo punição para o torturador no caso Merlino. O processo nem chegou a ser julgado em primeira instância, mas o Tribunal Regional Federal analisará novamente o caso na próxima semana, dia 23 de outubro. Os familiares do jornalista acreditam que o julgamento na área cível não foi agendado uma semana antes por mera coincidência e que teria servido para frustrar as expectativas.
O jornalista Luiz Eduardo Merlino.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA já chamou a atenção do Brasil em duas ocasiões, em 2010 e 2018, ao condenar o país pela “detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas” entre 1972 e 1975 no Araguaia, e pela “falta de investigação, de julgamento e punição dos responsáveis” pela morte do jornalista Vladimir Herzog. O país é signatário de tratados internacionais que determinam que o delito de tortura, que pode ser enquadrado como “crime contra a humanidade”, não é passível de prescrição e nem da aplicação da Lei da Anistia. É o que diz, por exemplo, o Estatuto de Roma, um tratado da Corte Penal Internacional.
A Constituição brasileira determina que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Caso um tratado não tenha passado por esse procedimento no Congresso, como é o caso do Estatuto de Roma, o Supremo determinou que tenha um status supralegal. Ou seja, ele passa a estar acima da legislação interna e abaixo da Constituição. Contudo, o STF não se pronunciou expressamente sobre a prescrição do crime de tortura e entendeu, posteriormente, que a Lei da Anistia não fere a Carta Magna, mostrando-se contrário a sua revisão. Assim, a questão da prescrição ainda está aberta a interpretações no meio jurídico.
Em processos na área cível, que resultam em indenizações e ações declaratórias, a condenação de torturadores vem se mostrando mais viável. O próprio Ustra já foi condenado em 2008 em uma ação civil movida pela militante de esquerda Maria Amélia De Almeida Teles, torturada pelo coronel. Apesar de ter também recorrido ao TJ-SP, a 1ª Câmara do Direito Privado manteve a decisão. Foi a primeira vez em que o coronel, homenageado por Bolsonaro como o “pavor” de Dilma Rousseff durante a votação do impeachment, foi reconhecido como torturador.
“Essa sentença é um recado”
O julgamento desta quarta começou ao meio dia no quinto andar do Palácio da Justiça, no centro de São Paulo, e durou menos de uma hora. Após a sessão, o clima era de comoção e tristeza. Uma vez fora do salão onde ocorrera a audiência, familiares se abraçavam e choravam. “Quando se fala que alguém foi torturado barbaramente durante 24 horas no pau de arara com choque elétrico, ninguém sabe o que é isso, porque a juventude cresceu no esquecimento. A própria esquerda não explicou o que é”, lamentou Angela Mendes de Almeida, ex-companheira de Merlino. Ela entende que a decisão pode ser uma espécie de recado. “Esse candidato que está aí [Bolsonaro] tem como herói o Ustra e está a ponto de se eleger. Eles estão mostrando. Essa sentença é um recado de que se pode torturar e matar”, argumentou.
A socióloga Eleonora Menicucci, testemunha-chave do caso, chamou a decisão de “dramática” e também acredita ser “um prenúncio de que aqueles tempos que poderão voltar pelo voto popular”. Contudo, ela diz que a decisão é um estímulo a continuar lutando “pela memória, pela verdade e pela justiça”. “Vale apena lutar. Sou uma pessoa que defino a minha vida por isso”, diz.
Mendes de Almeida, que garante que irá recorrer da decisão, concorda. “A luta vai continuar, é uma coisa definitiva na minha vida. Um resultado diferente não alteraria a situação, mas seria um contraponto a essa onda conservadora que acha que tortura não é nada”, opina. “Eles vão se arrepender muito. Porque todos nós vamos sofrer, mas quem mais vai sofrer são os pobres nas periferias”.
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