As últimas horas de Luiz Eduardo Merlino

Leitura do depoimento de Guido Rocha, realizada no Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, em 31/07/1979

     Poderíamos chamar esta história de “A primeira morte de Herzog” porque Merlino e Herzog morreram no mesmo lugar, foram torturados no mesmo lugar, agonizaram no mesmo lugar, possivelmente pelas mesmas pessoas, ou pessoas diferentes mas que, como se sabe, deixavam umas às outras os mesmos nomes falsos, da mesma forma como deixavam os mesmos instrumentos de tortura, os mesmos fios elétricos, alicates. Foram, além disso, torturados pelos mesmos motivos, porque cada um, a seu modo e na medida de suas forças, lutava contra a opressão política e os crimes que ela forçosamente praticava para se manter. É claro que há muitas diferenças entre Herzog e Merlino, e a principal está em que Herzog morreu num período (outubro de 1975) em que o movimento de massas e dos setores mais esclarecidos da população, já tinha condições de cobrar pelo crime.

      Merlino morreu nos dias ainda pesados (julho de 1971) em que poucos tinham forças para se unir a outros e resistir. Morreu nos dias mais negros da ditadura do general Médici, como se costuma dizer hoje. Preso num dia e morto quatro dias depois, seu corpo é entregue à família com a explicação inverossímel de que tentou fugir e foi atropelado numa estrada remota.

Os fatos

     Na noite de 15 de julho de 1971, uma quinta-feira, um grupo de homens que se apresentaram como agentes da repressão, prendeu o jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino na casa de seus pais em Santos, levando-o para “prestar um depoimento”.

     Cinco dias depois, na terça-feira, 20 de julho, seus pais receberam a notícia de que ele havia morrido, sendo feitas referências, primeiro, a que Merlino se suicidara, e depois, que ele fora vítima de um acidente na BR 116, ao ser transportado pelos órgãos de segurança para o Rio Grande do Sul, na altura de Jacupiranga.

     Merlino tinha então apenas 23 anos. Muito talentoso, já era bastante conhecido no meio jornalístico de São Paulo, através de seu trabalho na Folha da Tarde, Jornal da Tarde, e posteriormente no Jornal do Bairro. Foi também um dos criadores do jornal Amanhã, semanário de curta duração, apesar do grande sucesso alcançado no setor operário da época. Merlino morreu poucos dias depois de voltar de uma estadia de sete meses na França.

Guido Rocha, Genebra Suiça, abril de 1979.

Guido Rocha, Genebra, Suiça, abril de 1979.

     Há muito tempo o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, o Comitê Brasileiro pela Anistia, a família e os amigos de Luiz Eduardo Merlino, tentam descobrir o que se passou naqueles cinco dias entre sua prisão e o anúncio de sua morte.

Já existe, inclusive, um depoimento de posse do Comitê Brasileiro pela Anistia, de pessoa que testemunhou ter visto Luiz Eduardo Merlino nos cárceres da então OBAN (Operação Bandeirantes) em São Paulo, organismo que mais tarde passaria a se chamar DOI-CODI e onde morreram entre outros, nosso colega Vladimir Herzog, e o operário Manoel Fiel Filho. Esse depoimento, no entanto, permaneceu no anonimato porque seu autor ainda não podia usufruir de total liberdade de movimentos ou de ação.

     Mas agora podemos divulgar um depoimento de alguém que acompanhou de perto toda a agonia de Luiz Eduardo Merlino. Guido Rocha, hoje um exilado político que vive em Genebra, onde acabou se notabilizando como escultor de grande mérito, revelou em detalhes como Luiz Eduardo Merlino foi torturado e agonizou nas dependências da Ope ração Bandeirantes, na segunda metade de julho de 1971. Guido Rocha deu seu depoimento em documento assinado (cópia anexa) e também em fita gravada, esta tomada e transcrita por nosso companheiro Bernardo Kucinski (também anexa), em Bruxelas, no dia 1.º de abril de 1979.

 

Guido Rocha em Belo Horizonte, 2005.

Guido Rocha em Belo Horizonte, 2005.

Depoimento gravado de Guido Rocha, sobre a morte de Luiz Eduardo Merlino

P – Guido, vamos nos reportar ao assunto que nos trouxe a esta conversa: você esteve preso junto ou ao lado do nosso companheiro Luiz Eduardo Merlino?

R – Estive preso na mesma cela.

P – Você poderia então explicar quando e como isso aconteceu?

R – Isso foi em julho de 1971. Eu estava na solitária, na cela x-zero, na Oban, em São Paulo; eu já estava lá há alguns dias quando comecei a ouvir gritos e gemidos de alguém que estava sendo torturado, porque a sala de tortura é bem próxima, a cela mais próxima da sala de torturas é essa cela x-zero.

P – Você estava sozinho nessa cela? Estava há quantos dias?

R – Estava sozinho, há alguns dias, não tenho ideia precisa de quantos dias. É uma solitária com portas de chapas de ferro. O quarto é escuro, não tem janelas. O chão de cimento, tinha um colchão, sujo de sangue. Eu vi isso na hora que abriu a porta, porque quando se está lá dentro não se enxerga nada, completa escuridão. Tem uma aberturazinha na própria porta que eles abrem de vez em quando para por comida e eu comecei a ouvir os gemidos, os gritos durante muito tempo, quando entraram com o Luiz Eduardo, que eu não conhecia, não sabia quem era.

P – Você se lembra do dia exato?

R – O dia exato não, foi em meados de julho. Ele estava muito machucado, pelo seu estado físico. Trouxeram ele carregado, ficou deitado, imobilizado completamente. Mas muito tranquilo. Me impressionei muito com a segurança e com a tranquilidade dele.

P – Por que você achou que ele estava tranquilo?

R – Porque eu comecei a conversar com ele e ele começou a me dizer quem era ele, que tinha vindo da França, que tinha sido preso em Santos, na casa da mãe dele em Santos.

P – Preso por quem, ele falou?

R – Alguns cidadãos vieram procurá-lo, disseram à mãe dele que eram amigos dele. A mãe dele subiu, disse que tinha alguns amigos, ele desconfiou, mas não encontrou alternativa senão ir falar com essas pessoas.

P – E ele estava no quarto dele?

R – Sim, ele estava no quarto em cima. Quando chegou essas pessoas se apresentaram como agentes da repressão, não me lembro se disseram que eram do exército, da aeronáutica, do DOI-CODI, se apresentaram como agentes da repressão.

P – E tudo isso ele contou a você na cela?

R – Tudo isso ele contando, muito tranquilo, embora com a voz fraca e em mau estado físico. Disse então que a mãe ficou muito nervosa, e que ele precisou tranquilizar a família, a mãe dele e os agentes também disseram que a mãe dele poderia ficar tranquila, que ele ia simplesmente prestar um depoimento e depois voltaria. Ele estava tão tranquilo que eu perguntei a ele como é que as pessoas da Europa viam a repressão no Brasil, e ele ainda fez uma análise sobre o futuro. Por isso acho que ele estava muito tranquilo.

P – Você lembra quanto tempo vocês chegaram a conversar? Se foi de dia?

R – Essa questão de tempo é difícil de calcular. Devia ser de noite. Depois ele começou a piorar, alguns dias depois levaram à cela um companheiro, um outro preso político para ser acareado com ele. O normal seria que ele saísse da cela para ser acareado na sala de torturas, ou numa outra sala. Como ele estava muito mal eles preferiram trazer o prisioneiro para ser acareado na cela.

P – Então existe mais uma pessoa que testemunhou, que deve ter visto o Merlino no DOI-CODI caso essa pessoa esteja viva?

R – Claro. Quem era essa pessoa eu não lembro. Essa pessoa, um homem, ficou de pé, e o Merlino deitado. Ele estava muito mal durante a acareação e algumas coisas respondia com gestos, tal era o estado dele.

P – Você se lembra do conteúdo da acareação?

R – Não, isso não lembro nada.

P – Ele foi maltratado durante a própria acareação?

R – A própria acareação já era um mau trato. Ele estava tão débil que qualquer outro mau trato interromperia a acareação. De forma que não interessava a eles.

P – Durante esses dias em que ele estava na cela, desde que trouxeram ele à cela até a acareação, ele recebeu algum tratamento?

R – Não, nenhum tratamento. Antes da acareação ele já começou a sentir uma dormência na perna…

P – Esquerda ou direita?

R – Tenho impressão de que era a esquerda, não posso precisar. Essa dormência acabou piorando, (já depois da acareação) acabaram levando ele para o pátio em frente, porque a porta da cela dá para um pátio; puseram em cima de uma mesa. E um cidadão que se dizia enfermeiro começou a fazer massagem, um cidadão que andava com botas de soldado, calças de soldado, mas tinha uma bata branca. Deixaram a porta da cela aberta, e eu pude ver, nessa hora, mais claramente, a fisionomia dele, aí que eu vi a fisionomia e guardei bem porque fiquei várias horas olhando e mais tarde é que eu pude identificar, pela fotografia dele no jornal, que era Luiz Eduardo Merlino.

P – Mas você disse que havia dito seu nome no começo, quando foi trazido à cela, ou você se enganou?

R – Ele me deu o nome de guerra. Nicolau.

P – E o que aconteceu depois?

R – Me parece que na cela ao lado tinha gente vendo também e o enfermeiro não quis fazer o teste de reflexo na vista das outras pessoas. Eu também estava arrebentado, então eles não se importaram comigo e trouxeram ele para minha cela para fazer o teste de reflexo. Vieram, fizeram o teste de reflexo no joelho e não tinha resposta nenhuma. O enfermeiro ficou perturbado, ficou perturbado com isso e não sabia o que fazer. Eu falei: o estado dele é grave, acho que convém levar para o hospital. O enfermeiro ficou irritado comigo, disse que ele é que sabia, que já tinha recuperado outros presos políticos, que estavam em estado muito pior do que aquele, que aquilo não era nada para ele. Fechou a porta.

Pau-de-ara. Fonte: Arquivo em imagens, Última Hora, 1997.

P – Você não sabe o nome desse enfermeiro?

R – Não sei. Esse era o que fazia o papel de enfermeiro mesmo. Outros faziam outros papéis, duplos, esse fazia papel de enfermeiro apenas, sempre enfermeiro.

P – Médico não apareceu nenhum?

R – Para o Merlino, não. Para mim, apareceu uma vez.

P – Nesse intervalo?

R – Isso eu não me lembro.

P – Continuando…

R – Depois que fecharam a porta Merlino começou a piorar muito, logo em seguida. À noite começou a se sentir mal, estava bem pior. Eu tinha conseguido uma pera e dei a ele. Porque ele rejeitava tudo, não comia nada. Eu não me lembro dele ter comido nem uma vez… porque ele tentava comer e vomitava sangue. Aí ele começou a mudar, a ficar nervoso, falou que estava piorando… vomitou sangue outra vez. Eu tentei acalmá-lo. Ele pediu que eu o colocasse sentado. Merlino nunca ficou em pé desde o primeiro dia. Para ir a privada precisava carregar ele. Eu e um guarda. Bem, eu tentei acalmá-lo, comecei a dizer a ele para respirar fundo, fazer a respiração de ioga, manter um pouco de calma. Mas ele ficou muito nervoso e falou: “chama o enfermeiro rápido que eu estou muito mal, a dormência está subindo, está nas duas pernas e nos braços também”. Aí eu bati na porta com força e gritei e vieram o enfermeiro e alguns torturadores, policiais, os mesmos que já haviam me torturado e torturado a ele também. Vieram e o levaram. Agora vou dar um detalhe que pode levar a alguma prova de alguma coisa. Na hora que eles saíram, de madrugada, eu estava muito arrebentado, e eu imediatamente deitei. Eu deitei e eles fizeram uma troca de sapatos. Levaram os meus sapatos e deixaram o dele; pode ser que entregaram à família dele sapatos que não eram dele.

P – E depois?

R – Nunca mais eu vi ele.

P – Você se lembra de outras movimentações, de companheiros de cela, em função do caso dele?

R – Eu me lembro que ele disse também que trabalhava no O Estado de São Paulo. Disse: “eu estou tranquilo porque eles não vão ousar me matar”. Ele me disse: “Porque tenho um tio, me parece, um general, um parente que era ligado ou próximo ao exército”.

P – Não seria da polícia?

R – Sim, sim, exatamente, era ligado à polícia, e que trabalhava no O Estado de São Paulo e que poderia dar um escândalo se o matassem. Bom, no dia seguinte ao que levaram ele embora, realmente houve uma mudança radical lá dentro; começaram a limpar, varrer, mandaram todo mundo para o sol, me tiraram da solitária, foi a primeira vez que saí da solitária, me trocaram de cela imediatamente. Houve uma grande movimentação lá. Desde que tiraram o Merlino de lá houve uma mudança radical até quando eu saí.

P – Você ficou quanto tempo lá?

R – Me parece que eu fiquei menos do que um mês.

P – Então tudo isso o que aconteceu com o Merlino, deu-se em menos do que um mês: num período inferior a quatro semanas?

R – Ah, é. Deve ter sido num período de, no máximo, 15 dias. Talvez menos, talvez uma semana, talvez menos, não sei bem.

P – Você foi levado de lá para onde?

R – Fui levado de lá para o DOPS de Belo Horizonte. De lá fui para o presídio de Linhares.

P – E quando você ouviu falar de novo do Merlino?

R – Foi em Linhares. Foi lá que me disseram que o Nicolau era Luiz Eduardo Merlino. Eu até então não sabia quem era. E me disseram que ele teria sido assassinado; e eu não tinha visto ainda a fotografia, eu não estava seguro não. Mas em todo o caso eu dei o nome a minha cela de Luiz Eduardo Merlino; era hábito nosso, os presos políticos, dar o nome à sua cela, de um companheiro que tinha sido assassinado pela repressão. Mais tarde eu vi a foto no jornal Movimento.

P – Guido Rocha, você espera que essas declarações suas sirvam para esclarecer as circunstâncias da morte de Merlino?

R – Espero e estou disposto a fazer o que for possível para esclarecer o caso do Merlino.


Guido Rocha faleceu em Belo Horizonte, em 07/07/2007.