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Coletivo Merlino

     Finalmente, em 25 de junho de 2012, saiu a sentença que condenou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra a pagar uma indenização à família de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto sob tortura em 19 de julho de 1971, nas dependências do DOI-CODI.  O processo por danos morais, movido na área cível, obteve na primeira instância a sentença positiva proferida pela juíza Claudia de Lima Menge, juíza da 20ª Vara Cível. Abaixo alguns trechos da sentença que espelham a sua compreensão sobre o tema.

     “Evidentes os excessos cometidos pelo requerido, diante dos depoimentos no sentido de que, na maior parte das vezes, o requerido participava das sessões de tortura e, inclusive, dirigia e calibrava intensidade e duração dos golpes e as várias opções de instrumentos utilizados. Mesmo que assim não fosse, na qualidade de comandante daquela unidade militar, não é minimamente crível que o requerido não conhecesse a dinâmica do trabalho e a brutalidade do tratamento dispensado aos presos políticos. É o quanto basta para reconhecer a culpa do requerido pelos sofrimentos infligidos a Luiz Eduardo e pela morte dele que se seguiu, segundo consta, por opção do próprio demandado, fatos em razão dos quais, por via reflexa, experimentaram as autoras expressivos danos morais.(...)A morte prematura por motivo político e com requintes de crueldade privou as autoras do convívio com seu companheiro e irmão, respectivamente. Por certo, a indenização almejada não será capaz de sanar a dor suportada pelas autoras, nem suprir-lhes a ausência do ente querido. Destina-se a minorar o intenso sofrimento.”

     Nestas linhas de uma longa sentença está contida uma história de luta, primeiramente feita de silêncios impostos pela conjuntura triunfalista da chamada “abertura democrática” e pelas diretrizes contidas na Lei da Anistia de 1979. Em seguida, pela extinção do primeiro processo na área cível, uma ação declaratória, decretada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2008, por “motivos técnicos”: segundo essa interpretação, o tipo de ação proposta não cabia no caso das duas proponentes: Angela Mendes de Almeida, ex-companheira de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, e sua irmã, Regina Merlino Dias de Almeida. Em virtude dessa decisão do TJ e da rejeição de todos os recursos, a família, orientada por seus advogados, Fábio Comparato e Claudineu de Melo, entrou em 2010 com uma nova ação contra o coronel Ustra, ainda na área cível, agora por danos morais, o que implica em um ressarcimento. Esses são os meandros da Justiça brasileira e os caminhos “técnicos” na área jurídica que se impõem para que seja possível conhecer a Verdade. Ficou bem claro que a solução jurídica encontrada – já que não é possível, em virtude da Lei da Anistia de 1979, um processo criminal e já que não foi possível uma ação declaratória –  bem como a sentença emitida pela juíza que a “indenização almejada” na ação por danos morais não reparam uma morte.

Manifestação em frente ao Tribunal de Justiça de São Paulo, pela condenação do Coronel Ustra, 23/09/2008. Foto: João Zinclair

     A juíza Claudia de Lima Menge chegou à conclusão que levou à sua sentença a partir da documentação apresentada pelos advogados, mas sobretudo dos testemunhos de ex-presos políticos do período, ouvidos em audiência realizada em 27 de julho de 2011. Os depoimentos foram pungentes, cada narrativa reconstituiu um pedaço desta história partida. Reproduzimos nesta publicação trechos desses depoimentos. Fora, em frente ao Fórum João Mendes, velhos militantes e uma juventude que despertava para o tema manifestaram-se democraticamente, entendendo a importância que a punição dos torturadores do regime civil-militar tem para a história do Brasil e para as condições em que vive hoje a sociedade brasileira.

Como foi ceifada uma vida cheia de futuro

     A história de Luiz Eduardo da Rocha Merlino já é, agora, relativamente conhecida e está bastante retratada nesta publicação, mas convém retomar os fatos mais importantes de sua vida e de sua morte. Ele era um jovem bonito e talentoso, com um futuro promissor tanto profissinal como politicamente, quando foi preso, com apenas 23 anos. Ainda que jovem, já havia construído uma brilhante trajetória profissinal como jornalista no Jornal da Tarde, na Folha da Tarde e no Jornal do Bairro, bem como no jornal alternativo Amanhã. Era um militante admirado e combativo do POC (Partido Operário Comunista) e acabava de voltar de uma viagem à França, feita para estreitar contatos com a IV Internacional. Foi preso em casa de sua mãe, em Santos, dia 15 de julho de 1971, levado para o DOI-CODI de São Paulo, na Rua Tutóia, onde, conforme o livro Direito à Memória e à Verdade, editado pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça, em 2007, “foi torturado por cerca de 24 horas ininterruptas e abandonado numa solitária, a chamada ‘cela-forte’, ou ‘x-zero’.” Em 19 de julho a família recebeu, por um telefonema de conhecido, a notícia de que ele tinha se suicidado. Porém, apesar desta versão, o corpo não aparecia. A família deslocou-se para o IML de São Paulo mas foi informada de que não havia nenhum corpo com esse nome. Foi preciso um estratagema do seu cunhado, Adalberto Dias de Almeida, então delegado de polícia, para localizar o corpo em uma gaveta com evidentes marcas de tortura. Depois disso o caixão, lacrado, foi entregue à família.

     Posteriormente o laudo necroscópico assinado pelos médicos legistas Isaac Abramovitc e Abeylard de Queiroz Orsini indicava que sua morte teria ocorrido na estrada BR-116, na altura de Jacupiranga. A versão que a ditadura fez circular é que, enquanto era levado para o Rio Grande do Sul para “reconhecer” companheiros, teria escapado e se jogado debaixo de um veículo. Versão nunca comprovada, veículo nunca identificdo. Diversos militantes denunciaram, na Justiça Militar e em várias ocasiões, sua tortura e seu abandono, particularmente Guido Rocha, morto em 7 de julho de 2007, que esteve com ele na “cela-forte”, conforme o trágico testemunho, prestado em 1979, que aqui publicamos, e a quem homenageamos por sua coragem. Por ele ficamos sabendo que desde o momento em que foi jogado nessa solitária Merlino estava muito machucado e fiou deitado, porém ainda conversava. Pouco a pouco ele começou a se queixar de dormência na perna e sua voz fiou mais fraca. Por insistência de Guido, Merlino foi retirado da cela, colocado em cima de uma mesa onde um torturador lhe fez massagens inúteis[1]. Por outros relatos a família fiou sabendo também que ele foi retirado do DOI-CODI e levado provavelmente para um hospital. Depois não soube mais nada. O que fazer, se perguntavam os familiares de Merlino, como todos os familiares dos mortos e desaparecidos políticos? Como impedir que essa morte brutal caísse no esquecimento total? Ainda em 1979 sua mãe, D. Iracema da Rocha Merlino, tentou junto à Justiça Federal, através do advogado Luís Eduardo Greenhalgh, uma ação declaratória na área cível, porém a ação foi rejeitada: o caso foi considerado prescrito.

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Manifestação no Doi-Codi.

Lei da Anistia, um refúgio para os torturadores

     O grande obstáculo sempre foi o entendimento que desde então prevalece no Poder Judiciário, a crença em um acordo jamais escrito, implícito, de que a Lei da Anistia de 1979, proposta pelo governo Figueiredo e aprovada por um parlamento eleito durante a ditadura, inclusive com parlamentares biônicos, havia anistiado torturados e torturadores, através da expressão “crimes políticos e conexos”. A expressão “conexos”, em si anódina, tornou-se uma senha macabra. Começava a se desenvolver uma verdadeira política do esquecimento, a tentativa de passar uma borracha no passado recente, de mesclar compactamente os atos criminosos executados em nome do Estado e as ações de grupos políticos contra o governo nascido de um golpe militar. Essa convenção implícita persiste até hoje. Vimos, em 29 de abril de 2010, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal abdicar de analisar as implicações jurídicas do termo “conexo”, que só pode se referir a ações ligadas ao crime principal, para sancionar a anistia aos torturadores da ditadura, sob o argumento de que teria, naquele momento, havido um “acordo”. Na verdade, fazendo uma retrospectiva desta trágica farsa, vemos que as enormes manifestações populares que precederam a Lei da Anistia não redundaram em uma anistia ampla e irrestrita, como pediam os presos, ex-presos e perseguidos, e sim em uma legislação destinada a blindar as práticas de tortura, morte e desaparecimento contra qualquer investigação. Nos anos seguintes a força popular foi canalizada para o processo eleitoral, na esperança em um partido e em um homem. A ditadura militar foi acabando aos poucos, sem chegar propriamente a acabar, conservando-se na estrutura da sociedade brasileira elementos ditatoriais, entre os quais se sobressai a truculenta violência institucional atual contra os habitantes das favelas e periferias pobres. Atrás da política do “medo” e da “segurança” existe a continuidade da engenharia do extermínio dos pobres. Percebemos que a ordem reina no Brasil apenas sob as ruínas da memória e pela amnésia seletiva. É por isso que o Poder Judiciário tem bloqueado a maior parte das iniciativas de ação penal contra os crimes da ditadura, ao contrário do que tem acontecido na maior parte dos países da América Latina. Esse bloqueio atinge a Justiça, mas também o conhecimento da Verdade e o exercício da Memória, os três pilares da Justiça de Transição. A política do esquecimento do extermínio faz parte do próprio extermínio. A ratificação da teoria do “acordo” contém implícita uma construção da História a partir da história dos vencedores – uma história escrita pelo ponto de vista dos carrascos. Pois não é possível conceber nenhum acordo sob a sombra do terrorismo de Estado.

Na luta pela justiça

     Apesar de tudo isso, inconformada com o brutal assassinato a família do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, retomando a digna luta de sua mãe, D. Iracema, moveu, em 2008, uma ação declaratória na área cível contra o coronel reformado do Exército Brasileiro, Carlos Alberto Brilhante Ustra. A ação, subscrita pelos advogados Fábio Konder Comparato e Anibal Castro de Sousa, não pretendia nenhuma indenização pecuniária. Angela Mendes de Almeida, ex-companheira do jornalista, e Regina Merlino Dias de Almeida, sua irmã, pretendiam apenas o reconhecimento moral de que ele foi morto em decorrência das terríveis torturas que sofreu nas dependências do DOI-CODI de São Paulo.

Foto ilustração sobre imagens da manifestação em frente ao Fórum João Mendes, no dia da audiência de testemunhas do processo contra o coronel Ustra, em 27/01/2011. Fotos: Daniel Zanini

     A ação declaratória na área cível tinha sido o recurso que familiares de mortos e desaparecidos utilizaram para que o Estado brasileiro fosse considerado responsável por estes crimes, já que a via penal está bloqueada pelo entendimento da Lei da Anistia de 1979. O réu era sempre o Estado brasileiro. Inclusive no importante processo movido pela única sobrevivente da “Casa da Morte” de Petrópolis, Inês Etienne Romeu. Mas em 2006 a família Teles moveu um processo contra uma pessoa, Ustra, responsabilizado pela tortura do casal e uma irmã, bem como pelo sequestro de duas crianças pequenas, ocorrido no DOI-CODI de São Paulo. O coronel Ustra foi comandante deste destacamento de outubro de 1969 a dezembro de 1973. Durante esse período estiveram presas nessa unidade cerca de 2 mil pessoas. Entre elas, 502 denunciaram torturas e pelo menos 40 foram assassinadas. O processo da família Teles teve uma sentença favorável na primeira instância, em 2008, sentença confirmada pelo Tribunal de Justiça em agosto de 2012. No entanto, o processo do mesmo tipo no caso da morte de Merlino foi extinto na primeira instância, não chegando sequer a ser julgado em seu mérito. A ação declaratória para o caso Merlino foi proposta em 22 de outubro de 2007, foi acolhida em 8 de abril de 2008 pelo juiz, Dr. Carlos Abrão, e corria na 42ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, estando a audiência das testemunhas já marcada para 13 de maio subsequente. Mas o processo foi interrompido quando o Tribunal de Justiça de São Paulo acatou um recurso (“agravo de instrumento”) do advogado do torturador coronel Ustra. Em seguida, em três sessões distintas realizadas entre 29 de julho e 23 de setembro, três desembargadores manifestaram-se sobre a ação: por dois votos contra um aceitaram o ponto de vista do acusado e o processo foi extinto. Através de seus advogados, os familiares de Merlino recorreram ao Superior Tribunal de Justiça, mas o relator do caso não considerou o recurso e arquivou o processo em março de 2010. E por causa de um voto “técnico” bastante incompreensível o esclarecimento do assassinato de Merlino foi adiado por adiado por mais três anos.Diante de todas as alternativas então bloqueadas, em 2010, os advogados dos familiares de Merlino entraram com uma nova ação, ainda na área cível, desta vez por danos morais, contra o coronel Ustra. Também neste caso os advogados do coronel encaminharam ao Tribunal de Justiça de São Paulo um recurso (“agravo de instrumento”), tentando bloquear o seguimento do processo. Porém não obtiveram sucesso. E finalmente, em 27 de julho de 2011 a juíza Claudia de Lima Menge ouviu as seis testemunhas arroladas pelos familiares de Merlino. A ocasião foi de enorme importância pois, pela primeira vez, elas iriam dizer perante a Justiça brasileira o que sabiam do assassinato de Merlino sob tortura. Por sua vez o coronel Ustra havia indicado como suas testemunhas de defesa algumas pessoas que deveriam depor por carta precatória em seus estados, pois nenhuma residia em São Paulo. Esta parte do processo foi um fracasso, já que algumas delas declinaram da convocação, como o senador José Sarney, por exemplo. Uma outra, um general, embora citado em 2010, estava morto desde 2006. Por fim uma única testemunha falou em sua defesa, depondo em Brasília: o general Paulo Chagas declarou não ter notícia de nenhum ato de tortura praticado pelo coronel Ustra e também que o Exército brasileiro nunca tinha dado nenhuma ordem escrita para torturar presos. Diante do depoimento de nossas testemunhas e da quase total ausência de depoimentos a favor do coronel Ustra, a juíza proferiu a sentença de condenação em junho de 2012.

 [1] Jornal Movimento, de 8 a 12/8/1979, onde foi publicada também a entrevista, colhida pelo jornalista Bernardo Kucinski.

Depoimentos

Leane Ferreira de Almeida, presa em 15 de julho de 1971

“Eu fui a primeira militante que estava atuando a ser presa, do nosso grupo. (…) Ele passou a ser torturado a partir do momento em que ele chegou. E eu fui tirada da sala de tortura para o Luis Eduardo Merlino entrar. (…) Todos os presos escutavam os gritos dele incessantemente, até sua retirada da Operação Bandeirantes, desacordado e colocado no porta-malas de um carro. Isso foi visto por mim no pátio do Presídio Bandeirantes, comandado pelo Major Ustra; colocado no porta-malas de um carro por quatro outros policiais da mesma equipe. (…) desacordado. Parecia até já morto.”

No momento em que Merlino estava sendo retirado do DOI-CODI, Leane Ferreira de Almeida, conforme testemunho, encontrava-se em uma cela no primeiro andar do DOI-CODI.

“Nesta cela tinha uma janela basculante e duas outras companheiras tiveram que me segurar porque a gritaria fui muito grande quando retiraram o corpo do Luiz Eduardo…” (…) [Gritaria dos] policiais, porque aparentemente não seria possível salvá-lo. Enfim, eles fizeram um alarido muito grande e nós nos organizamos; as duas companheiras – eu era a menor das três – me seguraram e eu consegui chegar até a basculante pra ver o corpo dele sendo colocado no porta-malas de um carro, (…) vestido, inerte, totalmente vulnerável, por quatro homens comandados pelo Major Ustra.”

Poder Judiciário, 20ª Vara Cível Central, Processo 583.00.2010.175507-9

Eleonora Menicucci de Oliveirapresa em 11 de julho de 1971

“(…) no momento da prisão do Luiz Eduardo da Rocha Merlino eu já estava presa. Numa madrugada eu fui chamada, retirada da cela e fui a uma sala chamada sala de tortura, onde tinha um Pau-de-Arara e a Cadeira-do-Dragão. Neste Pau-de-Arara estava o Luís Eduardo da Rocha Merlino, nu, já com uma enorme ferida nas pernas, numa das pernas era maior. E eu fui torturada na Cadeira-do-Dragão. Neste momento eu vi o Luís Eduardo Merlino, eu assisti à tortura, sendo torturada, e vi o Coronel Ustra entrar na sala e sair. (…) Esse machucado que vi foi gangrenando (…) a cela das mulheres era separada da dos homens. E o Luiz, por informações dadas pelos carcereiros, ele estava na cela forte junto com o Guido. E depois um silêncio absoluto, não se falava mais nele. E depois, novamente se falava que ele tinha falecido e, na realidade, ele não morreu, ele foi assassinado. Ele foi levado para o hospital, não sei dizer para a senhora qual era o hospital (…) E depois do silêncio, a informação de que ele tinha falecido por gangrena na perna.”

Poder Judiciário, 20ª Vara Cível Central, Processo 583.00.2010.175507-9

Otacílio Guimarães Cecchini, preso em 15 de julho de 1971

À pergunta de se conhecia o Merlino antes responde: “Não, conheci lá. Estava da primeira cela, com uma visão muito boa, fácil de ver quem entrava para o interrogatório.(…) Eu fiquei numa cela que dava uma visão ampla de tudo e vi fatos (,,,) Havia do meu lado uma cela forte, uma chapa de aço; havia nessa cela uma pessoa que fiquei sabendo depois que era o Guido (…) Sai dessa cela para receber uma pessoa que eu não sabia que era o Merlino (…) Na manhã do dia seguinte, que era um sábado, o carcereiro – eu chamava ele de Marechal – abriu a cela e reclamou que a cela estava suja. (…) Mas o ajudou a sair porque ele estava com dificuldade, pegou ele rápido, foi colocado numa mesa no corredor. (….) o Merlino, ele não tinha como se locomover. E a tentativa era fazer uma massagem na perna pra que ele pudesse andar e ter o mínimo de autonomia e voltar para a cela. É claro que isso não resolveu o problema. (…) Eu também vi – acho importante para o depoimento – foi no interrogatório a que eu estava sendo submetido, na segunda-feira… (…) Mas no meu caso ele [Ustra] estava no interrogatório e era dele que partia a ordem se ia ser torturado ou não. As pessoas não tinham autonomia, passava por ele a decisão. Com um sinal ele decidia se ia ser torturado ou não, como foi no seu caso. (…) Alguém abriu a porta – não lembro o nome – e chamou o comandante, dizendo que era do hospital, uma ligação do hospital, pedindo a presença da família para autorizar uma eventual amputação. (…) E ele sai da sala para tomar a decisão, já que a família não podia ser acionada.”

Poder Judiciário, 20ª Vara Cível Central, Processo 583.00.2010.175507-9

Laurindo Martins Junqueira Filho, preso em 16 de julho de 1971

“ Após o contato com o Luiz Eduardo, eu recebi informações de um soldado do exército, que prestava serviço na Unidade da OBAN, de que o Luiz Eduardo tinha morrido, tinha sido torturado durante a noite. E esse soldado, de suposto nome Washington, de cor negra, veio até mim e falou que o Luiz Eduardo tinha morrido de gangrena nas pernas; tinha sido conduzido para um passeio – foi a expressão que ele usou – na madrugada, e que tinha sido várias vezes atropelado por um caminhão que prestava serviços para a Unidade da OBAN. Isso teria se repetido tantas vezes que os órgãos dele tinham sido decepados pelo caminhão. Então, esse foi o relato feito pelo soldado que prestava assistência aos presos nas celas, era militar. (…) Ele disse que o Luiz Eduardo foi conduzido do presídio da OBAN já morto para esse passeio, com um caminhão que servia a Unidade da OBAN. (…) Teriam simulado um acidente de trânsito.”

Poder Judiciário, 20ª Vara Cível Central, Processo 583.00.2010.175507-9

Paulo de Tarso Vannuchi, preso em 18 de fevereiro de 1971

“ … e retornei ao Doi-Codi na Rua Tutóia no mês de julho. (…) conheci o Merlino, que foi trazido para a porta da minha cela, no xadrez três. Rabisquei um croquis para a senhora (…) explicando onde foi a massagem, deitado numa escrivaninha, que um enfermeiro – conhecido como Boliviano – fez durante uma hora na minha frente. Pude conversar com o Merlino, eu era estudante de medicina e notei que ele tinha numa das pernas a cor da cianose, que é um sintoma de isquemia, risco de gangrena. E nos dias seguintes perguntei para carcereiros, sobretudo para um policial de nome Gabriel – negro, atencioso – o que tinha acontecido com aquele moço e ele respondeu que ele tinha sido levado para o hospital. Nos dias seguintes vi essa versão ser repetida e tinha contato com o Major Tibiriçá, cheguei a perguntar sobre isso e ele nada me respondeu. (…) E o semblante das respostas dos funcionários era que alguma coisa grave ali tinha acontecido. (…) Ele estava com muita dor, com uma voz muito fraca e se limitou a responder à pergunta: “Como você chama?” – Ele respondeu: “Merlino” – Eu não entendi, entendi que fosse Merlim, e ele acenou.”

 Poder Judiciário, 20ª Vara Cível Central, Processo 583.00.2010.175507-9

Joel Rufino dos Santos, preso em fim de dezembro de 1972

“Conheci muito [o Merlino], ele era meu amigo. Perguntado sobre eventuais comentários a respeito de Merlino respondeu: Principalmente um torturador, o Oderdan, ele me relatou como foi a tortura do Merlino. (…) Pela versão que me deu esse torturador, ele estava presente e comandou a tortura sobre o Merlino. E decidiu ao final se amputava ou não a perna do Merlino. A versão que recebi foi essa, que o Merlino, depois de muito torturado,  foi levado ao hospital e de lá telefonam, se comunicam com o Comandante Ustra pra saber o que fazer. Ele disse para deixar morrer.”

 Poder Judiciário, 20ª Vara Cível Central, Processo 583.00.2010.175507-9

010514_madres60235 A única luta que se perde é aquela que se abandona
                                                 Madres de la Plaza de Mayo, 2006