Merlino e o 30.º Congresso da UNE

Um triste congresso

Luiz Eduardo Merlino (publicado sob o pseudônimo de Antônio Mello)

Durante três dias o repórter Antonio Mello viveu a mesma vida dos estudantes que participaram do Congresso da UNE: andou debaixo de chuva, comeu muito pouco, dormiu menos ainda. Acabou também preso, como eles, numa cela úmida do presídio Tiradentes.

Tiros de revólver e metralhadora, o fim do congresso

Levei o copo de café preto e cheio de pó à boca, pela segunda vez. Meu gesto foi interrompido por tiros de revólveres e rajadas de metralhadoras. Vi alguns estudantes correndo e caindo na lama grossa do chão. Não vi quem atirava. Olhei para todos os lados. Pensei: “Será que a Polícia chegou e está encontrando alguma reação por parte dos estudantes que estão lá na frente?”

De repente, de todos os lados, começaram a surgir soldados com armas nas mãos, disparando sobre nossas cabeças e gritando palavras que ninguém entendia. Um estudante tentou saltar a cerca, um soldado fez fogo. A bala deve ter passado bem perto, o rapaz voltou de mãos na nuca, meio trêmulo. As meninas que cozinhavam para nós na cocheira improvisada em cozinha, começaram a correr.

Um soldado apontou-me o revólver e gritou:

– Corre, seu vagabundo, se quer levar uma bala.

 

Foto Folha da Tarde

Um pouco nervoso levei o copo à boca. Sabia que, devido à descoberta do local onde se realizava o Congresso da UNE, até comermos de novo iria levar horas.

– Se você não correr eu mato – gritou de novo o soldado.

Vi que não dava para correr devido à lama intensa que se acumulara na fazenda nos últimos três dias (não parou de chover o tempo todo). Levantei as mãos, cruzei-as contra a nuca. Juntei-me a dois outros jornalistas que, como eu, cobriam o XXX Congresso Nacional da UNE que não chegou a ser instalado. Juntos caminhamos até o plenário – um barracão improvisado para este fim. Ele estava coberto por uma lona verde, com vários galhos de árvores sobre ele. O soldado queria nos forçar a sentar na lama. Alguns dos congressistas, menos de dez, corriam em direção a uma serra próxima. Dois soldados acionaram suas metralhadoras e eles desistiram da fuga. Vieram se juntar a nós.

– Todo mundo de mão na cabeça, coluna por um para passar naquela porteira e ser revistado. Atirem suas bagagens fora – fala um sargento.

– Anda, seus baderneiros – grita outro soldado.

– Rápido, seus moleques; não tem moleza.

– Anda, anda, ou leva bala pra matar, seus cachorros.

Os soldados falavam quase ao mesmo tempo, tentando amedrontar os estudantes. As armas sempre apontadas aos nossos corpos, algumas delas engatilhadas, causavam-nos um pouco de medo.

O que mais me surpreendeu foi que não houve pânico. O moral estava elevado de forma surpreendente. Apenas duas meninas desmaiaram de medo. Os demais cantavam, assobiavam ou se mantinham em silêncio.

O sofrimento passado nos dias anteriores talvez os tivesse preparado para reagir daquela forma. Durante todos os dias que estivemos na fazenda Murundum, passamos por diversas privações. O quebra-jejum, em geral, se resumia a um copo de café. O almoço era meia concha de feijão, duas rodelas de batata.

O jantar, um prato de sopa.

Essas dificuldades começaram desde os últimos 20 dias que antecederam o congresso que não houve. Grande número de delegados veio do Norte do país. Muitos viajaram de pau-de-arara, ônibus e trem para poderem chegar a São Paulo. Dezenas dormiram no meio do mato sem comer coisa alguma, levando chuva seguidamente.

Desde o seu começo um congresso de frio, fome e sono

Uma semana antes de serem transportados os últimos delegados para a fazenda, os que se encontravam lá, já passavam dificuldades com refeições reduzidas, frio e sem ter onde dormir.

Eu fui para lá na quinta-feira, com mais quatro outros colegas de imprensa, fui apanhado em frente ao restaurante Paulino, na avenida Rebouças. Naquele dia, quase às 13 horas, dois Volkswagens se aproximaram e estacionaram junto a nós. O rapaz que dirigia um deles indagou:

– Onde fica o Hospital das Clínicas?

– Em Pirituba.

Aquela era a senha combinada para identificar que estávamos credenciados para o Congresso Nacional da UNE, como jornalistas. Nas imediações da Cidade Universitária, numa rua residencial, tivemos nossos olhos vendados para não identificarmos o local do Congresso, após sua realização. Faltavam 5 minutos para as treze horas.

Depois de rodarmos muito tempo, paramos. Demoramos cerca de dez minutos no interior dos carros. Depois, tiraram nossas vendas. Estávamos no campo, além de nós havia mais umas dez outras pessoas. Subimos num caminhão e fomos conduzidos, durante cerca de uma hora, até o local onde se realizaria o Congresso. Caía uma garoa contínua e o velho caminhão derrapava no lamaçal.

– Dirceu, venha até aqui – grita o delegado Buonchristiano.

O presidente da UEE (União Estadual dos Estudantes) estava à minha frente. Usava capa creme, a barba por fazer. Tinha o semblante abatido. Na véspera, tivera uma crise muito forte de asma, passando vários instantes sem poder respirar. Ouvi quando o coronel que comandou a operação indagou, em tom de afirmação, se ele estava organizando um foco de guerrilheiros, ao que Zé Dirceu respondeu ser uma reunião de estudantes. Algemado, seguiu entre dois investigadores. Só fomos vê-lo de novo a quase oito quilômetros de distância dali, dentro de uma perua do DOPS.

Depois dos quarenta minutos de derrapagens, balanços dentro do caminhão, chegamos ao local onde estava armada uma tenda. Era ali onde seria realizado o Congresso. A garoa continuava. De uma cocheira vinha o cheiro de comida. Entramos imediatamente na fila para receber nossa refeição. Ainda não tínhamos comido nada. Mesmo assim só nos coube meia concha de feijão e duas rodelas de batata. A fome parecia ter aumentado. Só voltamos a comer de novo à meia-noite: metade de um prato de sopa e nada mais.

Lama, desmaios, é o longo caminho a Ibiúna

– Coluna por um e todo mundo andando.

Os 720 passamos a caminhar a passo rápido.

Era numa casa de dois compartimentos. No quarto onde passei a noite não tinha mais que 30 metros quadrados. Mas havia nele mais de cem pessoas, tentando dormir todos sentados. Cada vez chegava mais gente, a situação ia se tornando cada vez mais difícil. Só lá pelas 3h30 da manhã é que consegui adormecer. Passados 30 minutos fomos despertados, havia uma outra turma para dormir. Saímos. O frio era tão intenso que nossos lábios rachavam. Fomos até a cocheira onde fora improvisada a cozinha, lá nos serviram um pouco de café.

– Um médico, um médico. Uma menina caiu lá na frente. Parece que está muito mal.

Um sextanista de medicina saiu da fila para atender o caso. Realmente a garota não estava bem. Devido à pouca alimentação, ela perdera os sentidos. Junto a mim passou outra garota carregada por dois estudantes. Era paraplégica, tinha dificuldades de caminhar.

A moça que perdera os sentidos foi conduzida para uma maca improvisada pelos estudantes e quatro deles passaram a transportá-la. Depois, conseguiram uma carroça, para levá-la.

Na plenária de preparação, muita discussão

Toda sexta-feira foi perdida no plenário com discussões sobre credenciais. Só com a delegação da Bahia, foram perdidas mais de três horas. A de Minas Gerais levou outro tanto de tempo. O pior é que os debates entraram pela noite. A abertura do Congresso estava marcada para o dia seguinte, sábado às 8h30. Mas a Polícia chegou uma hora antes, impedindo que se iniciasse.

Durante a plenária de preparação havida sexta-feira, tanto Travassos quanto José Dirceu viram que a situação quanto às eleições não estava definida. Ambos se preocupavam com os delegados que ainda não haviam chegado e os que não tinham ainda se decidido em quem votar. Os conchavos se intensificavam de todas as partes. A delegação do Ceará não me pareceu que ia ficar com o José Dirceu. A maioria, talvez se abstivesse em votar. O mesmo acontecia com pelo menos dez delegados da Guanabara e com os quatro do Rio Grande do Norte. Entre o pessoal de Minas Gerais a situação parecia a mesma.

Nos delegados vacilantes estava a esperança das duas facções. Por isso eles queriam que outros que ainda não haviam chegado também viessem. As discussões se acirraram, o clima ficou tenso e o 30º Congresso prometia muitas brigas. As críticas, em grande número, eram feitas em termos pessoais. Às vezes, causava-nos surpresa a reação do plenário. Se não fosse a Polícia chegar, o Congresso talvez só terminasse hoje ou amanhã à noite, após muita confusão.

No sábado, levantei às 6h30. Tinha ido dormir às quatro. Entrei na fila do café e aí chegou a Polícia.

Agora, na fila de presos pensava sobre o que podia acontecer. A caminhada era bastante grande, não sabíamos se iríamos para São Paulo, para Sorocaba ou para outro local. Caminhava atrás do Luís Travassos que ainda não havia sido reconhecido pela Polícia. Acendi um cigarro, tínhamos tido ordens para isso, e comecei a conversar. Um soldado, que é da Força Pública da Capital, chamou-me ríspido:

– Cabeludo, vem cá.

Saí da fila e fui até ele. O soldado retirou o cassetete. Naquela hora pensei que ia começar a apanhar. Fiquei com medo, pois outro soldado também se aproximou, cassetete em riste, mão no revólver que levava na cinta. O primeiro falou-me:

– Onde você pensa que está? Na casa da sua mãe, pra ficar batendo caixa e fumando?

Respondi-lhe que indagasse ao coronel, pois fora ele que nos dera a licença de fumar e conversar. Empurrando-me o soldado me fez retornar à fila.

Na altura do oitavo ou nono quilômetro, havia ônibus e caminhões estacionados, além de algumas peruas e jipes da Polícia. Os ônibus eram de empresas particulares. As moças foram transportadas para esses veículos e nós continuamos nossa caminhada. Quando passávamos junto aos coletivos trocávamos brincadeiras que faziam todos rir. A maioria dos ônibus trazia placas de “Turismo”. Isso foi motivo para muitas piadas.

Continuamos a marcha durante três horas. Nela os soldados conversavam conosco. Um disse:

– Olha pessoal, nós não temos raiva de vocês. Sabe, até gostamos de vocês. Inclusive eu sou estudante. Estou aqui porque recebo ordens e se não cumpro vou pra cadeia.

Outro reclamava contra o local que havia escolhido para o congresso. Dizia que “era muito escondido. De outras vezes vocês podiam escolher um lugarzinho melhor. Não precisa ser no meio do mato”

Um estudante respondeu que o próximo Congresso vai ser realizado no “Othon Palace”.

Guerra psicológica

O momento de maior apreensão foi quando chegamos a uma clareira onde  esperamos transportes requisitados pela polícia para seguirmos até Ibiúna. Sentados na grama molhada, alguns dormiam. Um cabo foi passando de soldado a soldado, eles faziam um círculo em torno de nós. O cabo dizia qualquer coisa aos soldados e estes tiravam seus cassetetes e ficavam balançando-os em nossa direção. Um sargento começou a travar e destravar sua metralhadora. Longe, ouvíamos a voz de alguém que mandava em posição de sentido, levar os fuzis aos ombros e marchar em nossa direção. Alguns pensaram em fuzilamento. Outros acreditavam apenas ser espancados. A maioria tinha certeza ser apenas uma pequena guerra de nervos. E era isso mesmo.

Em caminhões e ônibus seguimos para Ibiúna. No coletivo em que eu estava, havia mais 61 pessoas espremidas umas contra as outras. O soldado na frente queria colocar ainda mais dez estudantes. Era impossível caber tanta gente. Depois de nos darem vários empurrões, desistiram. Não dava mais ninguém, mesmo.

Ao chegarmos em Ibiúna – fomos os últimos – muita gente se encontrava em torno dos veículos. Alguns chegaram mais próximos, se oferecendo para trazer água e comida. Uma caneca d’água veio para os 62 que estavam no meu ônibus, deu apenas para molharmos os lábios. Depois mandaram um pão, dos grandes. Pedaços iguais foram distribuídos para todos nós.

Por volta das 16 horas saímos de Ibiúna. Muitas pessoas nos acenavam e desejavam “boa sorte”.

Centenas de estudantes foram presos no 30.º Congresso da UNE, realizado em Ibiúna em outubro de 1968. Destes 23 tornaram-se mortos ou desaparecidos políticos. Foto Jornal Repórter.

Em São Paulo, é o frio da cela da Penitenciária

Chegamos em São Paulo por volta das 18 horas. Com sirenas abertas as peruas da Polícia formavam verdadeiro “corso”. Fomos conduzidos diretamente para a penitenciária Tiradentes. Vários jornalistas aguardavam nossa chegada. Havia um pequeno aglomerado em frente à Penitenciária, o trânsito foi desviado. Os investigadores do DOPS e militares da Força Pública se mostravam muito orgulhosos.

– Nunca prendemos tantos subversivos juntos. É, foi uma boa colheita.

Do pátio em que ficamos, após contados, seguimos para as celas. Investigadores do DOPS e soldados da Força Pública nos acompanhavam, cassetetes em riste. Passamos pelas celas onde os outros já estavam. Ficamos na última.

O chão era de cimento, não havia camas, ou cobertores. Da latrina exalava um odor insuportável. Não havia pia, só uma torneira junto a latrina. Lá tínhamos que tomar banho e retirar água para bebermos. Mas, nem aí, o nosso moral caiu. Éramos 62 dentro de uma cela de, aproximadamente, 50 metros quadrados. Não podíamos deitar. Ficamos todos sentados, com as costas apoiadas aos joelhos dos colegas que se encontravam imediatamente atrás.

Discutimos nossa situação, formando uma pequena assembleia. Formamos comissões de alimentação, dormida e cigarros. Os mantimentos que haviam sido levados pelos congressistas foram divididos em partes iguais entre todos que estavam na mesma cela. O mesmo aconteceu com os cigarros. Comi um pedaço de chocolate que não tinha mais de um centímetro, dez caroços de amendoim, um pedaço de doce do tamanho do chocolate. O pedaço de queijo também era igual aos outros. Foi o nosso jantar, não dava 100 gramas no total.

O frio era intenso. Uma corrente de ar se formava da grade da porta à grade da janela. Forramos o chão com nossos cobertores pois não havia suficientes para todos. Sentados, como na fazenda em Ibiúna, tentamos dormir. Alguns o conseguiram. Fiquei conversando com um companheiro da Manchete sobre nossa situação. Mesmo sendo jornalistas, estávamos trancafiados em cela destinada a condenados de justiça. Resolvemos, mesmo sendo do nosso direito prisão especial, não pedi-la e ficar até o fim, aguardar os acontecimentos.

Quanto mais o tempo passava, o frio ia aumentando. Meus dentes batiam contra os outros pois eu não conseguia controlar os músculos dos maxilares. O chão mesmo forrado, era mesmo que gelo. No corredor, o carcereiro, um homem moreno, japona azul, bigode espesso, passeava.

Por volta da meia-noite abriu a cela e gritou com voz grossa:

– Rápido, todo mundo em fila, coluna por um e me segue.

Perguntei, se era preciso pôr as mãos na nuca. Ele ficou bravo, falou muitos palavrões e mandou que seguíssemos adiante. Passamos por uma porta estreita para outra ala do presídio. Outros jornalistas estavam sentados em bancos na sala. Fizeram-se sinal de que tudo estava razoável. Dei informaçõesm pessoais para preencher o documento de triagem. Fui levado até os outros companheiros de imprensa. Um deles abriu uma lata de leite condensado, devoramos todo seu conteúdo em questão de minutos. Isso serviu de diversão para os investigadores. Riam da nossa fome, do nosso frio. Cerca de dez minutos depois, formando uma fila, saímos do presídio, entramos num ônibus verde, só jornalistas e policiais, e fomos recambiados para o DOPS.

Lá encontramos Vladimir Palmeira, José Dirceu e Antonio Ribas, este presidente da entidade dos secundaristas que fora libertado três dias antes de ser preso de novo. Vladimir tremia de frio. Os olhos estavam injetados de sangue e ele tremia de frio. Sua respiração irregular denunciava que ele devia ter sofrido outro ataque de asma.

Não demoramos muito naquela saleta. Dela fomos levados ao gabinete do delegado Dandréa. Primeiro duas companheiras foram depor. Estavam calmas como todos nós. A fome que sentíamos aumentava minuto a minuto, como o sono. Fui depor junto com colegas da Última Hora e da Veja.

Após o depoimento fomos libertados. Saímos do DOPS a passos calmos. Lembrávamos os companheiros do mesmo cárcere que estavam no presídio enfrentando a fome, o frio e, como nós, sujos de lama.

– Precisamos avisar aos outros estudantes para que levem agasalhos e alguma coisa de comer para que a turma não passe mais fome do que a que têm passado – comentei com o colega da Veja. Um táxi parou a um sinal que fizemos. Fomos até um restaurante onde matamos a fome de um dia inteiro sem comer.

Enquanto seguia para casa lembrava que teria uma cama com colchão e um cobertor, ao invés do chão frio e da umidade da penitenciária Tiradentes onde ficaram mais de 700 estudantes.