Lembranças de Nicolau   

Michael Löwy

    Luiz Eduardo Merlino é destas pessoas que ficam para sempre gravadas na memória de quem as conheceu, por mais que passem os anos e as modas. Tive a chance de encontrá-lo em Paris, durante os poucos meses em que permaneceu no exílio (1970-71), como militante da nossa corrente (a velha Quarta), mas sobretudo como amigo, como “camarada”, no amplo e fraterno sentido desta palavra.

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    Luiz Eduardo tinha escolhido como codinome “Nicolau”. Certa vez me explicou que este era o nome que os primeiros comunistas brasileiros utilizavam para tentar traduzir “Vladimir”, o prenome de Lenin, ao português. “Nicolau” era inseparável de sua companheira de amor e de lutas, Angela, codinome “Taís”. Os dois haviam formado no POC uma corrente “quartista”, a “Tendência Nicolau-Tais”, que se designava, com auto-ironia, a “TNT”. A escolha do pseudônimo não era casual: “Nicolau” era leninista confesso e convicto.

Às vezes brincava, com humor e amizade, com minhas simpatias “luxemburguistas”. A verdade é que nos entendíamos muito bem, partilhando aquela mistura de Trotsky com Che Guevara que era tão explosiva como a TNT.

    Luiz Eduardo era um rapaz magro, de feições delicadas e agradáveis, sempre de óculos e bigode. Era generoso, calmo e decidido. Não se resignava a ficar no exílio e havia tomado a decisão de voltar o mais cedo possível ao Brasil, tentar reorganizar o POC e inseri-lo no processo de resistência armada à ditadura. Tentei dissuadi-lo, mas sem sucesso. Lúcido, ele reconhecia a dificuldade e o risco da empresa. Certa vez lhe perguntei como avaliava sua chance de “sair-se bem” da volta ao Brasil. “Cinquenta por cento” me respondeu…

    A análise de conjuntura era certa ou não? Será que a tática era a mais apropriada? A estratégia era correta ou equivocada? Trinta e cinco anos depois estas questões perderam muito de seu interesse. O que sobra é a integridade de um indivíduo, sua decisão de arriscar a vida pela causa da liberdade, da democracia, da emancipação dos trabalhadores, do socialismo. Para o Luiz

    Eduardo, voltar ao Brasil era uma alta exigência moral e política, uma espécie de “imperativo categórico” que não aceitava recuos ou concessões. Certas pessoas, que na época partilhavam da luta do “Nicolau”, mas hoje se converteram ao social-liberalismo – prefiro não citar nomes – pretendem que o comportamento daqueles que no Brasil e na América Latina arriscaram e perderam sua vida na luta desigual contra as ditaduras do continente, eram movidos por um “espírito suicidário”. Nada mais longe da verdade. Luiz Eduardo amava a vida, amava sua companheira, e não tinha a mínima vocação para o suicídio. O que o levou a tomar a decisão que tomou, e lhe custou a vida, foi simplesmente um sentimento de dever, uma ética, um compromisso com os companheiros de luta. É por isto que a memória dele continua tão viva e presente, não só no Brasil, mas também na França e em outros países em que se conheceu sua história.

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    Outro dia, mexendo em velhos jornais marxistas, dei com uma fotografia do Luiz Eduardo, com o título “morto em combate”. O artigo que acompanhava a foto já envelheceu, não apresenta maior interesse. Mas o olhar do Luiz Eduardo não perdeu nem um pouco de sua força e de sua intensidade e me atingiu em pleno coração: não pude conter as lágrimas, era como se tudo se tivesse passado ontem.

    A ditadura não deu uma chance ao Luiz Eduardo: preso logo depois de sua chegada, torturado, morto por não entregar informações. A herança que ele nos deixa é a de seguir lutando, para que nunca mais o Brasil conheça a opressão, a violência policial, a tortura.

     Joe Hill, o dirigente sindicalista revolucionário norte-americano, autor de belas canções de luta, deixou esta mensagem a seus companheiros, pouco antes de ser fuzilado pelas autoridades em 1915: “don’t mourn, organize” – não fiquem de luto, vão e organizem-se (os explorados e oprimidos). Acho que o “Nicolau” teria gostado desta mensagem…

maio 2006
Fonte: http://www.ovp-sp.org/merl_lembrar_nicolau.htm