O contexto da imprensa durante 1968

Beatriz Kushnir, Cães de Guarda – Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988
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Batalha da Maria Antônia, 03/10/1968.

 O jornal de maior tiragem: a trajetória da Folha da Tarde
 Os jornalistas

     (…) “Quando Abramo chegou pela primeira vez à Folha de S. Paulo, em fins da década de 1960, o jornal se encontrava em um momento de afirmação. O ano de 1967 foi o período inicial das transformações da Folha, quando o grupo passou a investir em tecnologia, com a aquisição de máquinas offset, e no aumento da frota para acelerar a entrega de seus jornais. Essas alterações se iniciaram pelo jornal Cidade de Santos, em 8/7/1967, e chegaram à Folha de S. Paulo em 1.º/1/1968. No meio do caminho, em 19/10/1967, contemplaram a Folha da Tarde, que renasceu a partir de então. A utilização do offset permitiu que a Folha da Tarde fosse o primeiro jornal paulistano a publicar fotos coloridas na primeira página.” (p. 226)

Por que a Folha da Tarde renasceu?

    (…) “A Folha da Tarde renasceu em uma brecha ainda aberta em fins de 1967 e que logo se fechou. Se o jornal despontou sob o signo arrojado, foi perdendo esse fôlego no decorrer da caminhada. Para fazer frente ao Jornal da Tarde, tido por muitos como mais à esquerda, ou menos à direita, o Grupo Folha da Manhã, relançou a Folha da Tarde, com uma diretriz, naquele instante, de reportar a efervescência cultural e as manifestações estudantis a pleno vapor.” (p. 230)

    (…) “Nessa ‘nova ordem mundial’ (rock’n’ roll, movimento feminista, guerra do Vietnã, Maio de 68 em Paris, Che Guevara) o JT e a Folha da Tarde, quando chegaram às bancas, encontraram no Brasil os festivais de música que revelaram Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Gal Costa, Geraldo Vandré e muitos outros. O próprio Roberto Carlos, tido como mais ‘enquadrado’, mandava tudo para o inferno. No teatro, o Oficina encenava O rei da vela, e quatro peças de Plínio Marcos estavam em cartaz em São Paulo.

    (…) Mas também havia a efervescência contestatória dos movimentos estudantis, que cresciam em uma proporção geométrica, e os primeiros passos da luta armada. Assim, eram tempos em que as radicalizações engatinhavam.” (p. 231)

    (…) “Essa proposta cumpriu seu papel por pouco mais de um ano e oito meses. No meio do caminho entre essa intenção e a realidade, tem-se a decretação do AI-5. Seguindo o desenho do novo tabuleiro político a partir de então, esse jornal passou a ter uma péssima fama e a sua redação foi completamente reformulada. Se no período até meados de 1969 tem-se a bonança, depois reinaram as trevas.” (p. 232)

    (…) “No dia seguinte, 3 de outubro (1968), foram duas as manchetes da primeira página: os 12 mil estudantes reprimidos por soldados do Exército na Cidade do México e ‘Maria Antônia volta a ferver’, quando um aluno, José Guimarães, foi morto por membros do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e do Mackenzie. As fotos do confronto entre os alunos do Mackenzie e os da Filosofia da USP, que ganharam manchete também no dia 4 de outubro, foram feitas por Makiko Yshi, fotógrafa da Folha da Tarde e uma das primeiras mulheres nessa função. Nelas aparecem os estudantes do Mackenzie atirando na direção da fotógrafa. Recorrente na memória de seus colegas, essa sequência de três fotos ilustra o clima que o jornal procurava captar nas ruas e mostrar.” (p. 246)

    (…) “Dez dias depois, em 14 de outubro, a chamada da primeira página dizia: ‘UNE já pensa na sua volta’. Depois do cerco policial ao trigésimo congresso da entidade ocorrido dois dias antes, em Ibiúna, onde mais de setecentos estudantes foram presos, os libertos prometiam passeatas por todo o país. Frei Betto relatou que o setorista de polícia da Folha da Tarde informou-lhe que os estudantes seriam presos durante o congresso clandestino. Mas era impossível avisá-los. Assim, restou ver a cobertura do congresso proibido feita para o jornal por Luiz Eduardo Merlino e Antônio Melo, que é rica em detalhes, nomes e fotos.

    (…) Solucionando o dilema, a Folha da Tarde ilustrou as prisões em Ibiúna de maneira detalhada. Como o jornal nascia com a proposta de cobrir os movimentos estudantis, Luiz Eduardo Merlino esteve presente no congresso proibido da UNE para cobri-lo. Mesmo detido e transferido para o presídio Tiradentes, Merlino pôde, além de reportar os fatos, trazer mensagens dos companheiros presos.

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Rio de Janeiro, assassinato de Edson Luís, abril de 1968.

    Sua reportagem, de cinco páginas, relatava e mostrava a violência praticada no local, que aumentaria a partir de então por todo o país. Merlino contou sobre os jovens que chegavam de todas as partes e que tomaram de surpresa a pacata Ibiúna, que ficou sem comida. Os homens do DOPS aportaram na quinta-feira, dia 10, ao mesmo tempo em que os estudantes também continuavam a desembarcar. O jornalista preocupou-se em nomear cada agente da repressão envolvido e em denunciar a prisão dos líderes estudantis, como Vladimir Palmeira, Luís Travassos, José Dirceu e Franklin Martins, e do seu amigo dos tempos do Amanhã, José Roberto Arantes. No pátio do presídio Tiradentes, o orgulho (sarcástico) dos investigadores do DOPS pelo sucesso da ‘colheita de tantos subversivos’ foi registrado pelo jornal. Solto, Merlino fez das páginas da Folha da Tarde testemunhas de tudo que viu e uma longa análise do movimento estudantil no pós-1964.” (p.247)

Fonte: Beatriz Kushnir, Cães de Guarda – Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988.
São Paulo, Ed. Boitempo Editorial, 2004.