Relembrando Merlino: uma temporada internacionalista
Angela Mendes de Almeida*
Parabéns à Fundação Perseu Abramo por publicar, pela primeira vez no Brasil, Pau-de-arara – La violence militaire ao Brésil, editado por François Maspero, em 1971.[1] Com uma introdução sobre a situação vivida no país naquele momento, o livro traz as primeiras denúncias de torturas dos presos políticos, iniciativa dos jornalistas Bernardo Kucinski, Ítalo Tronca e Luiz Eduardo Merlino.
Pessoalmente sei muito pouco sobre como se deram os passos para a concretização deste projeto. É natural que assim fosse, pois a regra era não ficar sabendo mais do que aquilo que nos cabia como tarefa, não perguntar nem que fosse só para se informar. Já tínhamos internalizado, quase como se fosse uma segunda natureza, o estancamento e a não-socialização das informações factuais. Lembro-me de estarmos juntos, eu e o Merlino, acho que no Boulevard Saint-Germain, no Quartier Latin, e ele ter-me dito que esperasse, que ia se encontrar com o Bernardo Kucinski. Atravessou a rua e andou em direção ao Boulevard Saint-Michel, em meio a uma multidão ávida pelas sessões de cinema. Voltou pouco depois, deu para eu esperar sem entrar em um café, o dinheiro era curto. Gravei também, pela sua conotação premonitória trágica, uma frase dele, dita algum tempo depois, em tom de pilhéria e com olhar maroto: ”Livro tão autêntico que seus próprios autores foram torturados.” Merlino aparecia, à primeira vista, como alguém extremamente sério, até carrancudo, com os óculos de aro negro herdados do meu pai, morto em 11 de julho de 1968, com que aparece em uma das poucas fotos que temos dele, tirada para o passaporte. Mas instalada a relação de companheirismo e cumplicidade, esbanjava o seu humor crítico e cético, confiante na nossa luta, mas ao mesmo tempo desconfiando do que nos esperava.
Quando, muito mais tarde, tive o livro em mãos, achei natural que a edição fosse da François Maspero. Ele era tido como simpático à causa da Liga Comunista (Ligue Communiste), a seção francesa da Quarta Internacional. Filho de resistentes, seu pai tinha sido morto no campo de concentração de Buchenwald e sua mãe, deportada para o campo de Ravensbrûck, havia sobrevivido. Na década de 1950, com 23 anos, cria uma livraria com o sugestivo nome de La joie de lire (A alegria de ler) e depois a editora, concentrando o eixo de suas publicações na defesa da luta de libertação nacional argelina contra o jugo colonial francês (1954-1962) e na crítica ao stalinismo do Partido Comunista Francês. Posteriormente volta-se também para luta dos revolucionários na América Latina. Suas coleções mais duradouras foram Cahiers Libres (Cadernos Livres) e Textes à l’apui (Textos de apoio) vão de 1959 a 1982. De 1970 a 1973 foram publicados vários livros na coleção Livres “Rouge”, em colaboração com a Liga Comunista.
O fato de eu não saber praticamente nada sobre a operacionalidade da iniciativa da publicação das denúncias de torturas sofridas, naquele mesmo momento, pelos militantes brasileiros, não deve estranhar. A obediência aos critérios de segurança que usávamos no Brasil tinha a ver com o fato de que estávamos na França, eu e Merlino, com o claro objetivo de um estágio político com prazo determinado para voltar. Por essa razão também mantivemos nosso círculo social reduzido aos companheiros brasileiros da Quarta Internacional, aos franceses e a um ou outro amigo ou amiga. Vivemos lá com muito pouco dinheiro, quase nada, morando em hotéis bastante miseráveis do Quartier Latin, em quartos sem banheiro, uma vida incômoda, sem poder se apoiar na solidariedade dos que estavam exilados. Em um certo período, Merlino chegou a trabalhar, lavando pratos em um restaurante, à noite.
Estágio terminado, Merlino empreendeu o primeiro passo para a nossa volta. Seu nome verdadeiro não era conhecido da repressão, que sabia apenas o seu nome de guerra, Nicolau, e o papel que exercia na nossa organização, o POC (Partido Operário Comunista). Voltou com seu passaporte legal e iria, no contato com os companheiros do Brasil, planejar a minha volta, já que eu estava completamente clandestina e condenada a quatro anos de prisão.
Como se sabe, Merlino foi preso três dias depois de chegar ao Brasil, em 15 de julho, na casa de sua mãe, D. Iracema, em Santos. Levado para o DOI-CODI de São Paulo, foi torturado seguidamente no pau-de-arara durante mais de 24 horas, conforme o depoimento de outros presos, jogado em uma cela solitária, de onde só foi retirado já com as pernas gangrenadas, para ser levado, provavelmente, para o Hospital Militar. O então major Carlos Brilhante Ustra, comandante do centro de tortura, negou a possibilidade de ele permanecer com vida depois de uma amputação, conforme depoimento de dois ex-presos no processo que movemos, eu e sua irmã Regina, contra este militar torturador. É portanto, o responsável direto de sua morte.[2]
Nossa ida para a França, que era apenas um interregno naquela nossa militância no Brasil, foi decidida em meio a um conjunto de acontecimentos que envolveram a nossa organização, o POC, em 1970. Mas mais do que esses acontecimentos, a soma deles havia produzido, na esquerda em geral e entre nós, um clima de desânimo, por vezes de desmoralização, permeado por deserções face à brutalidade da repressão, quando não de contorções políticas diante do perigo. Vivíamos em uma época angustiante. Para os que ficavam e queriam continuar, cada episódio desses era lamentado objetivamente, mas subjetivamente sentido como um abandono. Isolados, sem informação para além da crônica das quedas, das torturas, das mortes, das delações provocadas pela barbárie dos torturadores, fechava-se um círculo em que a militância se esvaziava de política.
O POC não era uma organização do tipo que nós então denominávamos de “militarista”, daquelas que achavam que o trabalho entre as massas atrapalhava o trabalho militar. No entanto, com o recrudescimento da repressão após o Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, todas as organizações tinham sido abaladas em sua estrutura, não apenas as que faziam ações armadas. Nomes de militantes nossos ficaram conhecidos dos aparelhos de tortura, militantes foram presos e barbaramente torturados, foi necessário para muitos uma clandestinidade estrita e cara. Nós, os militantes do POC, que estávamos no centro nevrálgico do circuito ações armadas-repressão, em contato solidário com outras organizações, pressentimos o caráter violento do tempo que vivíamos e começamos a encarar as ações de luta armada sob uma forma de auto-defesa e resistência, para proteger a segurança e a vida de companheiros. Fomos tachados de “militaristas” por uma minoria simbólica e numericamente importante, que cindiu, retomando o nome de POLOP (Política Operária).
Foi nessas condições que travamos contato com uma proposta que nos pareceu preencher aquele vazio de política. Paulo Paranaguá, brasileiro que militava há alguns anos na Liga Comunista e que havia participado, enquanto universitário de Nanterre, nas lutas que deram início ao Maio de 1968, na França, queria nos ganhar, e à nossa organização, para a Quarta Internacional. Propôs a alguns companheiros do POC, entre eles eu e Merlino, que abríssemos um contato pelo período de um semestre para conhecer as definições políticas e o caminho traçado pelo chamado “Secretariado Unificado” da Quarta Internacional, cujos líderes eram então Ernest Mandel, Pierre Frank e Livio Maitan.
Nós vínhamos de uma organização, a POLOP, que já tinha uma singularidade entre as organizações brasileiras do período. Enquanto outras organizações falavam em libertação nacional ou luta popular, a POLOP, desde a sua fundação, em 1961, orientava-se pelo “Programa Socialista para o Brasil” e baseava o seu trabalho na hegemonia ideológica do proletariado nesse processo revolucionário. Além disso, ela nos havia ensinado a procurar o conhecimento do marxismo nos textos originais, não deixando de lado a sua história. Sendo internacionalista, não tinha como modelo nenhum “socialismo realmente existente”: nem Cuba, nem China e muito menos a União Soviética.
Mas a proposta da Quarta ia além. Ela nos prometia uma compreensão mais definida do stalinismo e da luta anti-burocrática que então se travava na URSS e nas chamadas “democracias populares”; um contato com outras seções da Quarta, particularmente as da América Latina; e mais concretamente, um contato com o PRT (Partido Revolucionario de los Trabajadores), da Argentina, que era naquele momento uma seção da Quarta. Era portanto a esperança de um internacionalismo vivo, baseado na compreensão clara da radicalização das lutas sociais face às ditaduras na América Latina, que poderia nos retirar dos debates estéreis sobre luta armada que se davam no Brasil, inserindo a violência popular em uma perspectiva histórica e mundial. Era a expectativa de trazer para os companheiros do Brasil a capacidade de entender e sentir todas aquelas quedas, torturas e mortes como parte de um processo histórico que vinha de longe e iria além. Era a possibilidade de estabelecer um laço orgânico com os que lutavam nos outros países da América Latina, e em particular, na Argentina.
Nesse momento o que se passava naquele país era encarado pela Quarta Internacional como uma espécie de protótipo do que poderia acontecer no resto da América Latina. Veja-se, como exemplo, este trecho de Livio Maitan:
As organizações que se dedicam à luta armada ganharam bastante influência e levaram a cabo ações espetaculares, as lições de maio de 1969 [Cordobazzo} e da repressão deixaram claro frente milhares e dezenas de milhares de trabalhadores que a luta de classes na Argentina chegou ao nível de enfrentamento armado e que a ditadura militar só pode ser combatida através da violência revolucionária.[3]
Éramos quatro os que aceitaram a proposta: Maria Regina Pilla, Flávio Koutzii, Merlino e eu. Mas apenas nós dois pretendíamos voltar para o Brasil e foi isso que ficou combinado com os companheiros do POC que ficaram. Os outros dois, juntamente com Paulo, projetaram se inserir no PRT argentino. Essa opção foi encarada por nós como um passo para o internacionalismo e norteou todas as discussões no núcleo que formamos durante o estágio em Paris. Os três, de fato, passaram a se integrar o PRT, porém mais tarde o desenrolar de ações e discussões políticas, levaram a um rompimento entre a Quarta e o PRT, vindo eles a formar, com outros argentinos, a Fracción Roja.[4]
Chegados em Paris em datas diferentes, em dezembro de 1970, Merlino, eu e os outros brasileiros participamos de uma manifestação de rua impressionante para nós, que vínhamos daquelas ruas feitas de consumismo e de medo, sem nenhum sinal aparente de vida política mas com a certeza de que a repressão vigiava, prendia e torturava na mais absoluta indiferença da maioria da população. Manifestação impressionante pela sua estética e pelo seu conteúdo. Paris ainda guardava aquela aparência deixada pelas reformas de Hausmann, da segunda metade do século XIX, ainda não invadida pelos modernismos. Era de noite, a cena era fantasmagórica, bandeiras vermelhas em profusão, um resto de neve, os militantes parisienses em casacos cheios de peles e capuzes, lembrando algumas fotos que havíamos visto da Rússia bolchevique. Mas não eram as bandeiras vermelhas pacíficas que posteriormente se banalizaram na nossa pálida e mal resolvida democracia, não eram bandeiras vermelhas ligadas à institucionalidade. O protesto era em favor da organização ETA (Euskadiko Ezkerra), que lutava e lutou até há bem pouco tempo pela independência do País Basco. Eram 16 militantes de ETA que estavam sendo julgados e poderiam ser condenados à morte pelo método medieval ainda usado pela ditadura de Franco: o “vil garrote”, um colar de ferro a ser colocado no pescoço da vítima, com um parafuso atrás que era girado até quebrar o pescoço e causar a morte. Esse processo judicial e suas peripécias despertaram a opinião pública não apenas espanhola, que se manifestava nas condições impostas, como a de todo mundo. Afinal, apesar da condenação à morte de 9 dos acusados, nos últimos dias de dezembro, as penas foram comutadas em prisão perpétua. Assim, de chofre, nós fomos inseridos nas batalhas do mundo. Eu me emocionava e pensava como poderia transmitir aos companheiros do Brasil esse sentimento de coragem para lutar. Tenho a certeza que a emoção era partilhada por Merlino.
Além das discussões no núcleo de brasileiros, da participação em manifestações públicas e reuniões nacionais internas da Liga Comunista, cada um de nós participou de uma célula. Merlino foi integrado em uma célula de Montrouge, nos arredores de Paris, com predominância de operários, enquanto eu participei – e foi uma experiência incrivelmente interessante – de uma célula de jovens poloneses escapados da Polônia, aquela “democracia popular” que vivia sob a bota da União Soviética e que depois se revoltou contra o jugo stalinista.
Merlino e eu, buscando traduzir a riqueza do víamos e ouvíamos, elaboramos teses que pretendíamos apresentar para discussão aos companheiros do Brasil. Merlino, por exemplo, escreveu um trabalho sobre a intervenção no movimento operário. Comentando algumas posições de outras organizações, ele chega ao eixo fulcral do trabalho que é a discussão sobre que tipo de palavra de ordem poderia mobilizar os operários na situação da ditadura. Bastante influenciado pela leitura das teses dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista, ele trabalha a idéia das reivindicações de transição. entendidas como as que levariam a classe operária a tomar “consciência dessa verdade: se ela quer viver, o capitalismo deve morrer.”
As reivindicações de transição são conquistas do proletariado ainda durante a vigência do capitalismo, que têm como característica o fato de não poderem ser integradas pelo funcionamento normal do regime burguês. Desse modo, elas marcam um período em que se alteraram significativamente as relações de força a favor do proletariado, de tal forma que ele impõe à burguesia, medidas que freiam, bloqueiam ou dificultam o processo normal de acumulação de capital. Assim, por exemplo, reivindicações que impõem um controle operário sobre a produção, como o fim do sigilo bancário, do segredo comercial, da abertura dos livros de conta das empresas aos trabalhadores, do direito de veto dos trabalhadores sobre as dispensas, sobre o ritmo de produção, etc.
(…)
Não temos a ilusão de podermos avançar aqui um programa de lutas para a classe operária. Não nos cabe aqui “descobrir” algumas palavras de ordem mobilizadoras: o papel da vanguarda não é o de inventá-las mas de saber generalizar as boas palavras de ordem que saem das próprias massas. Esta tarefa cabe aos camaradas que participam cotidianamente das lutas. Já podemos contar com avanços neste sentido na organização. A palavra de ordem de 35% de aumento imediato, “para recuperar o que foi roubado”, mais o aumento percentual da ditadura traz uma série de vantagens: recupera a palavra de ordem de luta contra o arrocho, que já andava meio desgastada: é uma palavra de ordem permanente, para fora dos períodos de dissídio que andam meio desmoralizados: é educativa, porque agita o problema do “que foi roubado”; etc. Outras palavras de ordem como esta, ligadas a problemas sentidos cotidianamente pela classe, devem ser trabalhadas: o problema do desemprego, do contrato coletivo, de assistência médica, etc.[5]
Com essas reflexões, Merlino tentava integrar as discussões a que tínhamos tido acesso às suas observações derivadas da vivência, enquanto jornalista e militante, no calor do acompanhamento da greve de Osasco de 1968. Ao mesmo tempo ultrapassava criticamente os limites estruturais do corporativismo sindical que era, e continuou sendo, depois da abertura, a tônica do movimento operário brasileiro.
Em diversas ocasiões pudemos ter contato com militantes estrangeiros que estavam em Paris. Particularmente animadoras foram as nossas conversas com um casal de militantes espanhóis, Maria e Gerardo, que também viviam uma ditadura, esta bem mais antiga que a nossa, iniciada com uma revolução e uma guerra civil que marcou indelevelmente a história dos movimentos revolucionários.
Tínhamos dois “protetores”, companheiros e amigos franceses, que tinham como tema principal de atuação, inclusive em suas contribuições para o jornal semanal Rouge, da Liga Comunista, a América Latina: Toussaint e Rovère.
Toussaint (Xavier Langlade), morto prematuramente em Cuba em 2007, vinha do “Movimento 22 de março”, liderado por Daniel Cohn-Bendit. Foi a sua prisão, em março de 1968, juntamente com a de Nicolas Boulte, em uma manifestação de apoio à luta dos vietnamitas, que desencadeou a ocupação do oitavo andar de um edifício da Universidade de Nanterre, que veio a ser o estopim do Maio de 1968. Toussaint conhecia todos os movimentos da América Latina, tinha sempre histórias a contar, misteriosas, conspirativas, às quais ele acrescentava ainda mais pimenta com um sorriso enigmático. E modesto. Ninguém melhor o definiu que Daniel Ben-Said: “Revolucionário irônico – em vez de heróico – que faz o que deve ser feito, sem fantasiar: uma definição que Xavier sem dúvida teria aceito.”[6]
Rovère (Thierry Jouvet ), também morto prematuramente em 2004, era ainda estudante secundarista quando aderiu, em 1968, à JCR (Jeunesses Communistes Révolutionnaires), que irá dar origem à Liga. De uma enorme cultura política, que ia muito além da América Latina, manifesta em sua colossal biblioteca, ele não hesitou, mais tarde, em tornar-se operário na fábrica Rhône-Poulenc, em Vitry, nos arredores de Paris.[7]
E tínhamos também como “protetor” e “orientador”, amigo e solidário, Michael Löwy (Carlos Rossi). Ele nos falava sobre os seus idos da POLOP, da qual havia sido fundador, em 1961. E claro, também de Lukács, de Lucien Goldmann e de Rosa Luxemburg, sua “paixão”. Eram aulas de história do tempo presente.
Merlino e eu tivemos também um contato pessoal, caloroso, porém breve, com um personagem histórico, Pierre Frank. Fomos visitá-lo, num domingo à tarde, em seu apartamento sóbrio, antiquado, na Rua Filles du Calvaire. Era uma espécie de despedida desejando-nos sorte, Merlino estava para partir. Mal sabíamos de que tipo de despedida se tratava então… Pierre Frank passou do Partido Comunista Francês, nos anos 1920, para a Oposição de Esquerda e foi secretário de Trotsky na ilha de Prinkipo, seu primeiro exílio, na Turquia. Depois Frank passou por todas as vicissitudes da guerra: condenado à prisão na França antes da invasão nazista, fugiu para a Bélgica e depois para a Inglaterra, onde foi preso pelo governo como “estrangeiro perigoso”, e internado em um campo de detenção até o fim da guerra. Na reorganização da Quarta, participou de seu núcleo dirigente e 1968 foi encontrá-lo em pleno vigor de uma luta que não parou nunca. Foi ele quem ganhou a juventude da JCR para a Quarta Internacional, em 1965, que irá dar origem à Liga.[8] Em seu livro – La Quatrième Internationale – Contribution à l’histoire du mouvement trotskyste (A Quarta Internacional – Contribuição para a história do movimento trotskista) – ele cita, no seu capítulo “Aqueles que morreram para que a Internacional viva”, a morte sob tortura de Merlino.[9]
Mas foi Livio Maitan quem nos proporcionou algumas das discussões mais vivas. Ele havia participado da resistência anti-fascista na Itália e, condenado em 1944, teve que fugir para a Suíça, onde também passou o resto da guerra internado. Na reorganização da Quarta, fez parte do seu núcleo dirigente, até a sua morte, em 2004.[10] Com imensa generosidade ele e sua esposa, Anna Maria, nos receberam – os cinco brasileiros e Rovère – em sua modesta casa de veraneio, em Frascati, pequena cidade situada numa colina nas proximidades de Roma, em junho. Entre massas italianas e o conhecido vinho branco da cidade, debatíamos o mundo e a história. Com que vigor juvenil, durante dois dias inteiros Livio improvisou verdadeiras conferências sobre vários temas, entre outros a luta anti-burocrática na União Soviética e a América Latina, tendo como eixo as lições da revolução cubana e a posição da Quarta sobre a evolução da revolução.
Com estas conversas e estes contatos humanos, se solidificava um sentimento de continuidade da luta através de gerações, de paralelismos entre a resistência antifacista e a luta contra as ditaduras latino-americanas.
Nossos sonhos, nossas expectativas, nossas esperanças viram-se radicalmente frustrados. Depois que Merlino viajou, cheguei a falar com ele pelo telefone, rapidamente. Mas ele não voltou a telefonar. Viajei para uma reunião internacional, voltei, e ele não ligava. Já estávamos na segunda quinzena de julho, entrando em agosto. Tentei ligar para a casa de sua mãe, D. Iracema, e uma telefonista respondeu que não podia completar a ligação. Alguma coisa me pareceu estranho, mas os telefones eram então muito precários. Já era agosto quando um amigo dele, de Santos, me chamou para conversar e mostrou uma carta de um seu parente que dizia que Merlino estava morto.
Imediatamente compreendi a estranheza do telefonema. É impossível descrever o que senti. Relembrando aqueles dias, acho que tive uma crise de desespero. Voltando à casa onde vivia, no metrô, por coincidência, encontrei a companheira espanhola Maria, nos braços de quem me debulhei em lágrimas mal conseguindo explicar. Vaguei depois pelas ruas, entrei em um cinema e sem ver o filme, adormeci por minutos e acordei como se a notícia fosse terminar no fim da sessão. Fui socorrida pelos companheiros franceses, Jean-Pierre Beauvais e os psicanalistas Claude e Claude, marido e mulher. Permaneci na casa deles como que adormecida, dormia muito com os medicamentos que me davam, e acordava em desespero.
Quando pude voltar a pensar, decidi que iria, apesar de nossa organização praticamente destruída no Brasil, tentar fazer o que tínhamos projetado como nossa causa comum: tentar nos reinstalar no Brasil, a partir da atividade de nossos militantes reagrupados no Chile e na Argentina. Achei que era a maneira mais coerente de manter sua memória viva nas lutas vindouras. Mas isto já é outra história.
Fonte: KUCINSKI, Bernardo; TRONCA, Italo. Pau de Arara - A violência militar no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo, 2013.
* Historiadora, do Coletivo Merlino, coordenadora do Observatório das Violências Policiais-CEHAL-PUC/SP.
[1] Paris, François Maspero, Collection Cahiers Libres, 1971. [2] Em 2008 eu e a irmã de Merlino, Regina Merlino Dias de Almeida, abrimos um processo na área cível contra o coronel Ustra, responsabilizando-o pela morte de Luiz Eduardo Merlino. Através de um embargo, os advogados de Ustra conseguiram a extinção desse processo no Tribunal de Justiça de São Paulo. Em 2011, movemos um outro processo e dessa vez tivemos ganho de causa em primeira instância pela sentença emitida pela juíza Cláudia Menge. Os advogados de Ustra recorreram à segunda instância e não há ainda definição. [3] “Political Crisis and Revolutiionary Struggle in Argentina”, abril de 1971, citado em Federico Cormick, Fracción Roja – Debate y ruptura en el PRT-ERP. Buenos Aires, 2012. p. 42. [4] Sobre esse processo de ruptura, ver: Federico Cormick, ibid. Ver: http://eltopoblindado.com/files/Libros/libro1.pdf [5] Luiz Eduardo Merlino, “Questões de organização e de programa de lutas no movimento operário”, junho de 1971 pp. 30 e 33. [6] Daniel Ben-Said, “Les nôtres: Xavier Langlade” http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article4867 [7] Jan Malewski, “Thierry Jouvet, dit “Michel Rovère” (1952-2004)” http://www.preavis.org/breche-numerique/article2096.html [8] Pepe Gutierrez Álvarez, “Pierre Frank, el militante con piel de elefante” http://www.anticapitalistas.org/Capitanes-sin-medallas-1-Pierre [9] Paris, François Maspero, 1973, p.151 Ver também: http://www.marxists.org/history/etol/writers/frank/works/march/index.htm [10] “Livio Maitan - Bio-Bibliography Sketch” - http://www.trotskyana.net/Trotskyists/Bio-Bibliographies/bio-bibl_maitan.pdf